sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Ressaca urbana.

Despertou com um forte arrepio pelo corpo, como se inúmeros insetos percorressem demoradamente a sua pele, mas achou que fosse somente o típico frio de uma manhã de segunda feira. Tentou se levantar, mas era como se sua cama fosse um grande imã que a atraía de tal forma que, qualquer esforço seria meramente em vão. Lutou para que uma das pernas pudessem ficar para fora da cama, enquanto a outra lentamente se desgrudava dos lençóis. Após uma verdadeira batalha dantesca, conseguiu enfim apoiar os dois pés no chão e se arrastar até o banheiro para tomar banho, mas no meio do caminho, entre a sala e a cozinha, pôs para fora todo o resultado de um domingo entre quase amigos e desconhecidos agradáveis. Resmungou entre um pano sujo e um rodo jamais utilizado que aquela segunda feira seria uma merda.

- Mas que ressaca da porra!

Vestiu-se numa velocidade quase maior do que a com que o relógio marcava o seu atraso. Sua pontualidade ainda era britânica, seu chefe é que não se acostumara ainda com o fuso horário. Pegou as chaves e a bolsa, bateu todas as portas ás suas costas. Esqueceu sobre a cama a carteira e toda a sua maquiagem. Acabou deixando a si mesma sobre a cama, sem perceber.

Correu pelas ruas acumulando sobre si a poeira do cotidiano daquela cidade que parecia engolir a todos, um grande triturador de sonhos e pensamentos. Um liquidificador de sentimentos e planos sobre as suas imensas avenidas retas e sujas de asfalto. Precisava chegar a tempo em seu emprego, não era a primeira vez que corria contra o tempo mas era a primeira vez que sentia que seria inútil, que talvez não conseguisse chegar lá, sensação tão certa quanto o estômago revirado e a cabeça dolorida. Como se os seus próprios pensamentos fossem os causadores daquilo.
Não adiantaria pegar um ônibus, mesmo que quisesse, a cidade estava emaranhada em um trânsito caótico e infernal. O que lhe restava era correr até chegar a uma estação de metrô e ter a sorte de não precisar enfrentar fila alguma. Seus sapatos novos pareciam desgastados demais, sua roupa branca parecia refletir o asfalto, num tom de cinza muito parecido com os seus olhos da cor do céu que anunciava algum fim, talvez do dia. Lembrou-se que estava sem maquiagem, o rosto limpo de qualquer mentira, era ela, uma mulher atrasada para tudo. Principalmente para si mesma. Olhou novamente para o relógio, amaldiçoou mais uma vez a ressaca, o trânsito, o sinal que não abria nunca. Talvez tivesse sorte se corresse.

E correndo não percebeu que o trânsito então, como um laço mal feito, se desatou de repente, e ela, um mísero ponto tão cinza quanto a rua, cinza como seus olhos que anunciavam algum fim, estava no meio de todo o movimento das rodas, dentro do coração selvagem de pedra que pulsava. Viu apenas como um borrão vermelho, algo a se aproximar tão rapidamente de si que a atravessara. Apenas sentiu o seu corpo estar tão leve que poderia voar sobre todos aqueles carros e cair delicadamente sobre o asfalto quente e seco. Ouviu ao longe pessoas gritando, buzinas enlouquecidas e passos quebrando mais ainda o seu corpo. Não sabia o que estava acontecendo exatamente, mas sabia que chegaria muito atrasada e que certamente seu chefe lhe daria um aviso prévio, então, esse era o fim. Não conseguia abrir os olhos para se certificar se estava próxima ao prédio do seu trabalho, o sol queimava seus cílios e algo a impedia de abri-los. Ouviu quase que surdamente algumas sirenes e, quando finalmente conseguiu, com esforço igual ao que teve ao se levantar, abrir um dos olhos, viu ao seu redor várias pessoas e algumas câmeras.
Estava atrasada, estava suja, estava esticada dilascerada numa avenida, estava sem maquiagem e ainda por cima queriam fotografá-la. Amaldiçoou a todos, mas principalmente a ela mesma, por ter esquecido o seu estojo de maquiagem sobre a cama.
Não queria aparecer assim, na capa de qualquer jornal, como se estivesse morta. Só estava com ressaca, só isso.

-Mas que ressaca da porra! - disse, antes do seu dia terminar.

28 comentários:

Rene Serafim - "Juninho" disse...

era só ressaca.

Rafael disse...

Um toque de Kafka.
Eu li um comentário no teu outro conto, concordo com o cara. Bukowski versão feminina.

Julia disse...

Fica a pergunta: Ela foi atropelada mesmo e morreu ou era só ressaca? Dependendo da ressaca, acontece exatamente isso.

Muito bom, bom mesmo, fiquei empolgada aqui.

Francisco disse...

Katrina, se você não vier aqui amanhã eu vou pra Mairiporã pra gente ir num boteco daí.

tô falando sério, mano.

Juliano disse...

Ressaca do demônio essa ai.

Beijoos

CL disse...

Mais uma mulher que quase morreu quando sua máscara de pó compacto e rímel foi esquecida em casa.

Caru disse...

caaaaara. ressaca. é isso aí. nunca vi tão bem descrita!



não lembro por qual motivo obscuro não fui ver dolores, mas não me perdoo até hoje.
e antes de o show ser remarcado, já tinha feito minha escolha. cranberries com certeza.

e q mão q nada, com esse show sou capaz é de fazer um cafuné na cabeça branca do véio.

Paulo Jorge Dumaresq disse...

Não é um texto com võmito de ressaca. Identifica-se uma fina tessitura de teia de aranha que vai construindo o olhar e o raciocínio do leitor ao contato mais demorado com as palavras, frases e períodos. Supremo!

Sueli Maia (Mai) disse...

hahahahaha...Hugo, Raul e Cara, tu escreve muito.
"...Quase amigos e desconhecidos agradáveis..."...o rosto limpo de qualquer mentira, era ela, uma mulher atrasada para tudo. Principalmente para si mesma..."
Isso é um quase coma.
Acorda que tu estás atrasada pro trabalho! Desmaiasse ou dormiste outra vez.

Hiper!
Abraço.

Glaucovsky disse...

Beleza, vamos realizar seu sonho. rs Manda o seu roteiro para o e-mail do meu perfil. bjs

Natália Corrêa disse...

Ela não devia mesmo ter saído da cama, haha.

Depois desse texto, vou adiar minha ressaca de amanhã...(mentira, estou só fingindo que não sou caretinha e que não tomo nem refrigerante =P)

Marcel Hartmann disse...

Moral: nem acorde.

HugoCrema disse...

Cotidiano demais. Engraçado como a perversidade e a confusão mental só podem brotar a partir da subversão do que há de mais comum. Parabéns querida, made it once more.

Felipe disse...

Genial, só isso.

Danilo Augusto disse...

Quanta inspiração

Tatiane Trajano disse...

Puta merda
que ressaca!

Paulo Roberto Figueiredo Braccini - Bratz disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Paulo Roberto Figueiredo Braccini - Bratz disse...

tem dias q é preferível fingir q eles não existem no calendário ... adorei querida ...

bjux

;-)

Erica Vittorazzi disse...

Toma Gatorade... dizem que passa!

Marcos Andrade disse...

Há ressacas boas, mesmo assim...

Quanto às donzelas: ELE as devora todas!:)

Vinny disse...

Me deixou com medo de ressacas agora =[

Hehehe, belo texto moçaaaa!

Você pode fazer um favor pra mim? Tem como você me passar o código do widget do last.fm que você tem? Porque o last.fm tirou esse widget do site e não passa mais o código, e eu consegui só um outro das mais tocadas da semana, mas queria esse das últimas executadas. Se puder me mandar o código eu agradeço.

Beijoos

.maria. disse...

hahaha... não é uma sacanagem ter que pagar pelo divertimento do dia anterior? a hora da estrela cinza é humilhante mais que a própria hora.

quanto ao livro do Octavio Paz, dizem os entendidos que tem a preço acessível na Livraria Cultura. O meu foi comprado naqueles feirões de livros da Usp a um precinho camarada. Signos em rotação foi lançado por aquela coleção Debates, de críticos, e é mto foda, recomendadíssimo. E barato.

Rafael Sperling disse...

AhuahAuhA
To lendo um livro do Gutiérrez!!!
Nossa GG em Havana.
Parece ser bem legal! Já apareceu um negão com uma pica de 40cm, que ejacula sem utilizar as mãos. oh yeah

Vital disse...

ressaca do caos e da indiferença.
ressaca da falta de motivos de ser em meio a tudo isso.

só a cachaça mesmo pra anestesiar.

Marcelo Mayer disse...

mas nem o deus engarrafado(coca-cola) sara isso

Daiana Costa disse...

Um toque de Kafka. (2) Bem parecido, quando descreves os arredores, alternando com os sentimentos desta mulher, em mais um dia de sua vida, com as mesmas preocupações mundanas, além do gosto amargo de uma noite anterior, banhada pelo 'etil.'

Se bem que, indetifiquei-me horrores HAOIUAHOIAUAUI

Gostei muito!

Não importa disse...

Que ressaca homérica! Já tive uma dessas.

Anônimo disse...

Adorei o espaço.
Momento "elegança" no Cagada de Urubu (http://cagadadeurubu.blogspot.com)