segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Dolores

"O que acontece é que não aguentamos o peso da consciência"

Gabriel Garcia Marquez


O celular vibrava mas só o soube quando percebeu o barulho de algo se movimentando dentro de sua bolsa, como se alguém por detrás dela seguisse seus passos e estivesse a vasculhando em busca de algo. Quatorze ligações perdidas de um número desconhecido num curto período de duas horas. Desligou o celular sem ao menos descobrir quem tanto a ligava, sem ao menos ter sido absorvida por um pouco de curiosidade ou preocupação. Estava muito tranquila, como há muito tempo não se sentia ao trilhar o caminho de volta ao seu apartamento. Também estava muito cansada e já sentia o seu cheiro sobressair o perfume que usara de manhã ao sair para o trabalho, os saltos incomodavam seus pés que não sabiam exatamente onde se apoiariam: se jogavam todo o peso para a ponta dos pés ou para todo o calcanhar. De vez em quando parava e tirava um dos saltos para que um dos pés descansasse um pouco e se lembrasse a postura correta para usá-los, o dedão do pé parecia inchado mas não tinha certeza, também não tinha certeza se era câimbra o que sentia em sua panturrilha. Estava próxima da rua do seu apartamento, onde usualmente havia uma grande movimentação naquele horário devido aos bares e restaurantes, mas que naquela noite estava vazia, com poucos carros estacionados e um ou outro que aparecia e desaparecia na curva de uma esquina. Tirou de sua bolsa seu já velho Ipod mesmo que só faltassem uns 5 minutos até chegar à sua casa e deixou que o shuffle escolhesse a canção que por acaso seria If you hold a stone, talvez do melhor álbum do Caetano Veloso na opinião do seu ex namorado, que nem sabia o nome do álbum e não conhecia o Caetano até conhece-la.

O porteiro a cumprimentou da guarita meio sonolento e desnorteado sem mesmo olhá-la direito. Não havia ninguém no hall de entrada como era de se esperar (não talvez para aquele horário), porém as revistas da sala de espera estavam espalhadas pelo chão e algumas inclusive estavam rasgadas. Talvez fosse uma das crianças do casal do quinto andar, do quarto ou do terceiro andar, mas preferiu não chutar o andar onde haviam as tais crianças (se é que haviam crianças naquele prédio ou mesmo casais). Estava tão cansada que sentou-se em uma das poltronas até que o elevador chegasse ao térreo do décimo andar. Segurava os saltos em uma das mãos e a outra revistava a bolsa no colo em busca do maço de cigarros e isqueiro, mas não os encontrava. Encontrou uma caixa de tranquilizantes quase dentro da bolsinha de maquiagem, mas não se lembrava de carregar consigo aquilo. Também não se lembrava que o elevador estava quebrado já fazia um mês e por sorte ela morava no segundo andar. Subiu os dois andares descalça, agora se lembrando que para se andar de salto o peso dos pés tem que se dividir entre as pontas dos dedos e o calcanhar, nunca jogando o peso do corpo todo para uma só das partes. Movia de vez em quando os dedos como se conduzisse um cigarro imaginário sendo que a vontade naquele momento era tão real que roía as unhas e deixava pelos lábios os pedacinhos do esmalte azul da semana passada. A cada degrau o seu corpo era arremessado para a frente, o peso do tempo a movendo lentamente. Tentava se lembrar de tanta coisa, mas só conseguia se lembrar agora do refrão de “Zombie” de uma banda irlandesa que não era o U2 e ela não lembrava, ela não conseguia se lembrar de tal maneira que no quadragésimo degrau sentou-se e tentou controlar um pouco o desespero da situação. Tentou aliás, se lembrar porque estava tão desesperada de tal forma que estava chorando e roendo as unhas. Os saltos foram arremessados até o trigésimo sétimo degrau e não havia uma previsão de resgate.

In your head, in your head

A canção se repetiu sete vezes e sete foram suas tentativas de se recordar o nome da banda que também já não se recordava que era irlandesa, como uma outra banda que ela também conhecia e que não conseguia se recordar qual seria. O Ipod estava sem bateria desde o momento em que ela entrou no prédio.

Desistiu.

Buscava agora a chave do seu apartamento dentro da bolsa (e tentava se recordar como é que fora parar na porta do seu apartamento sem seus saltos). Ao abrir a porta, se deparou com sua sala quase destruída. O sofá estava de lado e em pé, sua mesa de vidro quebrada assim como alguns vasos e objetos de decoração, suas lembranças de viagens e presentes de amigos espalhados pelos cantos, alguns próximos de uma televisão caída. Algumas fotos espalhadas pelo chão estavam rasgadas, mas seu rosto sempre permanecia intacto nas imagens, intacto e solitário em meio aos fragmentos das outras pessoas. Não se desesperou ao andar pelos cômodos e ver as paredes rabiscadas com palavras e desenhos inidentificáveis e suas roupas rasgadas, peças íntimas expostas nas luminárias e seus livros jogados dentro de panelas transbordando água. Não se desesperou ao ver marcas de sangue pelo chão, manchas que conduziam até o lavabo do banheiro que apresentava poucos sinais de destruição. Ela estava absorvida em todos os detalhes, absorvida demais para se desesperar por aquilo, ou por ela. O telefone tocava abafado, até que descobrir que estava dentro do lixo. Na segunda chamada atendeu a ligação, a música na cabeça, a banda irlandesa que a vocalista tinha nome de dor, os pés que doíam sem seus saltos. A pessoa do outro lado da linha gritava ao mesmo tendo que agradecia a Deus por tê-la atendido finalmente. Não compreendia tudo o que se dizia do outro lado, mas entendia que estavam preocupados com ela. Quem? Ela não se lembrava. A mulher apenas dizia que iria agora mesmo busca-la (seria sua mãe?) e que ela tomasse dois comprimidos do remédio (o tranquilizante?) que ela havia posto em sua bolsa ás escondidas para um caso semelhante a esse (que caso?). Não mais gritava, mas chorava enquanto pedia alguma coisa a Deus, implorava que ela tomasse os dois comprimidos e que ficasse no quarto. Agora ela dizia algo sobre surtos e suicídio, algo a respeito de sumir durante uma semana e a família (que família?) estar a sua procura (mas não havia ido ao trabalho?). Ela ficava muda, ouvia a mulher desabafar e aconselhar, apenas consentindo quando o silêncio e a urgência de suas palavras surgiam. A mulher novamente recomendava o remédio, o quarto e a calma. Ela não aguentava mais. A mulher pedia que não desligasse o telefone, para que permanecesse na linha, que contasse como chegou em casa. O fio do telefone cada vez mais se parecia com um colar de madrepérolas que ela sempre quis em sua infância, mas nunca teve a chance de usá-lo. A mulher chorava, dizia algo sobre amor e que tudo ficaria bem. O fio do telefone ficaria bem entre as suas correntes. Comentou apenas para que a mulher ligasse mais tarde, que ela iria tomar (então) os comprimidos e experimentar um colar de madrepérolas que ela havia comprado. A mulher consentiu, pediu cuidado e disse sobre amor. Antes que ela desligasse, perguntou à mulher misteriosa do outro lado da linha:

- Tem uma banda, in you head in your head, zombie, zombie, zombie. Ela é irlandesa, a vocalista tem um nome que lembra dor, ou que doí. Você sabe quem é?

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Down downtown

Para I.C


Os pedestres os olham abismados ao passarem rentes aos seus passos, dois embriagados abraçados na frente da estação de metrô olhando absortos para o céu que lentamente ganhava as cores do dia. Sentaram-se na calçada esperando que a estação abrisse e que cada um seguisse o seu destino, em silêncio, com medo de que algo muito frágil entre eles fosse quebrado com a primeira palavra pronunciada.

Ela foi a primeira a se manifestar ao dar um sorriso meio desgovernado e alinhar sua cabeça no ombro dele, tentando sussurrar algo que era impossibilitado pelas risadas provocadas pelas cócegas que ele sentiu naquele instante. Era difícil não sentirem um estranhamento ao se tocarem com aquela intimidade depois das garrafas deixadas para trás transbordando de mágoa. Suas peles eram feitas de vidro e qualquer toque estava sujeito a fraturas e estilhaços que machucariam qualquer um que estivesse próximo, mas também estavam sem pele e qualquer toque ocasionaria dores lancinantes até se desintegrarem, talvez se tornando início: cinzas.

- Você é capaz de lembrar de alguma coisa que eu disse no começo? Algo que prove que eu posso ter sido uma companhia bacana mesmo se eu não tivesse bebido nada?

- Vejamos, você disse que o que mais odeia em toda a filosofia marxista é essa coisa de chamar todo mundo de companheiro. Que chamar de companheiro consegue ser pior do que chamar de brother e que chamar qualquer pessoa de ambos, prá você, consegue ser pior do que xingar de filho da puta. Lembra disso? Eu não parava de rir com esse seu comentário.

- Vagamente, foi bem antes da vodka isso? Eu parecia chata, não parecia?

- Foi antes, você nem estava falando enrolado ainda. Foi erro meu ter lhe oferecido vodka enquanto você se mantinha forte na cerveja. Mas não parecia chata, ou pelo menos não ficou assim do meu lado.

A estação de metrô abre, as pessoas próximas se encaminham rapidamente para dentro das acomodações e ignoram o casal sentado próximo à escada como se fossem dois cães de rua, silenciosamente abandonados num canto qualquer por alguém. Ela procura dentro da bolsa o seu celular e deixa derrubar sua escova de cabelo e um absorvente. Ela não repara, mas ele não conseguia tirar os olhos daquele absorvente como se fosse uma evidência de que ela era tão humana quanto qualquer outra mulher, tão sujeita a sangramentos quanto as demais.

- Desculpa pelas perguntas, é que eu ando meio mal esses dias.

- Você contou, eu te entendo.

- Eu devo ter contato tudo quando eu estava bêbada né?

- Se eu te conhecesse a mais tempo eu diria que foi tudo. Como te conheço a pouco, acho que foi só o suficiente para uma noite.

- Eu pareço uma cadela insensível não? Eu lembro vagamente de ter te empurrado quando tentou me beijar.

- Você parecia que ia chorar, ficou calada e meio distante por um tempo depois de ter dito tudo aquilo. Eu só queria te abraçar e te dizer, sei lá, que estava tudo bem. Sabe, aquilo não ia mais acontecer, essas coisas.

- Mas eu lembro de ter te empurrado, não foi? Você caiu até. Eu nem tentei te levantar, devo ter rido. Aliás, eu ri não foi? As pessoas encontram algum motivo para rir no desespero.

- Caí da mesa, tive até que dizer para você ter calma, eu não ia mais tocar em você, que aquilo que aconteceu com você não ia acontecer hoje, lembra? Quando eu me levantei e vi você rindo fiquei mais tranquilo. Eu esperava ter que sair atrás de você pelas ruas, com medo de sei lá, que você tentasse fazer alguma besteira contra você mesma naquele estado.

- Mas eu corri, não lembro bem qual foi o motivo, mas eu corri de você. Lembra?

- Eu segurei a sua mão depois de ter contato um pouco sobre mim. Deve ter sido muito para você e então, bom, você se levantou e saiu andando do bar. Eu paguei a conta e fui atrás de você. Parecia desnorteada e quando percebeu que eu te seguia começou a correr.

- Eu te xinguei tanto e você só tinha feito o favor de me ouvir a noite toda. Viu como eu fui uma vaca estúpida com você? Insensível prá cacete?

- Não, olha só: não é porquê você não me deixava te tocar e te ajudar que você é isso. Não nos conhecemos a tanto tempo assim, as nossas peles ainda estão estranhas. Elas doem e podem se quebrar a qualquer momento. Você me contou algumas coisas da sua vida, eu contei outras da minha, mas ainda assim eram superficialidades, camadas sobrepostas a essas nossas peles. Seremos esquecíveis em breve, você vai ver. Não se preocupe no que eu acho de você agora, seria uma opinião baseada em uma camada, entendeu?

- Entendi, mas o que você acha de mim agora?

- Quer mesmo saber?

- Claro! Diz aí, o que você acha de mim?

- Acho que você está cansada demais por hoje e que deveria entrar logo nessa estação e voltar para casa.

- Não vai mesmo dizer né?

- Eu acho que eu também estou cansado demais por hoje e que meu ônibus é aquele que está se aproximando daquele ponto perto dos correios, e que se eu não o pegar agora, só daqui a uma hora.

- Você parece um fugitivo.

- Você também. Assim como eu, você também está fugindo da sua pele.

Levantaram-se com a ajuda um do outro e seria a primeira vez que se tocariam sem medo da dor que isso lhes causariam. Ela garantiu que tinha o número dele gravado em sua agenda e que ligaria ainda naquele dia por respostas. Ele a abraçou rapidamente e correu para o ponto antes que o ônibus, que já havia parado na rua acima, dobrasse a esquina e o esquecesse ali a mercê do frio e do sono.

Mandou-lhe beijos à distância que se perderam pelo caminho.


Conto baseado em Downtown


domingo, 1 de janeiro de 2012

Cola Pritt

Fiz um risco sobre a linha do metrô
que leva exatamente o mesmo tempo
do plano que tracei para esquecer
as palavras que eu recortei
da revista que você odeia
e que colei
na tentativa de criar um poema
que mesmo rasurado no título
fizesse algum sentido saturado.
Mas as palavras caíram uma por uma
por falta de um pouco mais de cola pritt
e muita sinceridade.