quinta-feira, 30 de julho de 2009

Giz.

Pensava com os olhos presos ao fundo do copo, o uísque quase no final, gelo derretido, lágrimas salgadas adoçando os lábios e manchando o balcão. Depois de um ano, ainda era possível sentir as mãos dele procurando algum lugar no corpo dela. Sentia-se patética ali, chorando por alguém que provavelmente naquele horário estaria numa cama confortavelmente trepando com outra mulher enquanto o casal protagonista da novela trocam aquelas juras de amor mais do que eternas. Mas ninguém sabe o que acontece depois do final feliz. Precisava de um ínicio e inícios dependiam de um fim. O dela era estar ali, comemorando um ano, olhando para o dedo com a marca imaginária de uma aliança, que apertava e doía nesses dias em que ela se deparava com a solidão de uma cama vazia.

O dedo girava dentro do copo vazio, brincando com o único cubo de gelo que sobrara quando ele se sentou ao seu lado, perfume de homem recém lavado e puro de qualquer pecado, fingindo muito bem que não notara as suas pernas bem torneadas de mulher feita que sabia usá-las com crueldade numa cama. Sorriram, os dentes dela, amarelo de anos que fazia questão de jamais ocultá-los, muitos tratamentos para que branqueassem mas no final, ela era fraca demais para o café que ele lhe trazia na sua cama e deixava o dia todo na garrafa térmica, a maneira dela de sempre estar com o gosto dele em sua boca salivando por um cigarro, acompanhante ideal; os dentes dele, de rapaz que usou por muito tempo aparelho e agora quer sorrir para todas as mulheres sem medo de denunciar a idade, que não era assim tão pouca, seus quase 24 anos, na lata. Assim, em como todos os bares onde uma mulher atraente e sozinha bebe uísque nacional ao lado de um rapaz jovial com muitos planos na cabeça mas nenhuma companhia, a história havia de seguir o roteiro original de conversas e desabafos do tipo"Hoje faz 1 ano da minha separação, foi muito fácil entende? Só precisamos assinar alguns papéis e éramos novamente livres para transar com qualquer outra pessoa. Não sinto falta dele, sabe, eu não lembro nem porque a gente se casou. Somos bons amigos, parceiros de truco ás vezes" " Não penso em me casar, sei lá, isso de ficar preso por pápeis, acorrentado pelo pé por uma aliança. Nem tenho idade prá isso, tenho? Quero só curtir a vida, conhecer mulheres como você" "Tá afim de ir lá em casa? Tem bebida e é de graça. E tem a minha companhia, a gente podia conversar mais sobre isso."

Mas não conversaram. Os dedos dele já foram procurando os botões da camisa dela e tão de repente, seus lábios mordiscavam os seios fartos dela, que controlavam seus dedos para não invadirem a calça dele, as unhas quase quebradas sobre o zíper semi aberto. Tentou beijá-la, mas não permitiu que ele a invadisse dessa maneira, tinha seu corpo a disposição de suaves e bruscas invasões, mas que não tocassem nos lábios que outrora foram de outro. Queria ainda ter o sabor de café da manhã, mesmo que muito tênue, em seus lábios. Única lembrança que lhe restara, as fotos foram picadas e queimadas numa típica atitude de mulher de meia idade infantil. Que ele se satisfazesse com os outros lábios.

Sorriram novamente. O dele um sorriso de agradecimento, o dela, satisfação.
Correu até a cozinha e brindou solitária por um ano. A geladeira refletia algo do seu corpo todo vermelho e suado. Sentiu-se orgulhosa, cada marquinha um troféu de consolação. E porque não, ligar e desejar que ele tivesse uma comemoração igualmente satisfatória?

Mas já passara da meia noite, não havia muito o que comemorar além de um garotão estendido na sua cama, gabando-se pelo feito de 5 vezes numa noite só. Expulsou-o da cama, com a promessa de que sua casa estaria sempre de portas abertas e sua cama sempre vazia. Mais um sorriso, desajeitado o dele, que nem sabia o nome dela, falso o dela, tudo mentira o que falara, queria ficar sozinha e dormir. Esquecer que gritou aquele nome, o dos convites de um casamento desfeito a um ano e que ninguém mais se lembrava que um dia existiu, só ela, com aquele orgulho ferido e fatiado, de noivinha largada ao pé do altar. Mulher esquecida e tragada nos lençóis doados ao exército da Salvação. Prometeu, como promete todos os anos que iria começar uma dieta e largar os cigarros na próxima semana, que amanhã esqueceria tudo o que se passara e começaria novamente, qualquer coisa que fosse. Já escrevera um final, não muito feliz, não muito convicente. Ótimo para um best-seller de bolso.


Acordou, e os dias estavam grudados no passado.
Escritos em giz.

terça-feira, 28 de julho de 2009

Tão certo quanto. Se é certo.

Tão certo quanto não saber a cor exata dos teus olhos quase dormentes e quase tão próximos dos meus é a certeza de que a cada movimento do seu peito eu vou te perdendo entre os meus dedos sujos de cigarros que tentam timidamente se perderem dentro do seu cabelo empoeirado de lembranças das quais eu não sei se já faço parte, porque, esse momento ainda não me veio à cabeça como uma lembrança do dia anterior ou de muitos anos atrás, mas me veio como um sonho ou uma alucinação, muito real e que me assustou, confesso.
Então, há de se perdoar palavras confusas pronunciadas em frases ílicitas e gestos levianos em corpos alheios, uma profusão de sentimentos que, se bem sabem, foram emprestados, estes sim, de lembranças reais.
Tão certo quanto os meus lábios ligeiramente secos foram os teus sorrisos ligeiramente secos e soltos, ao belprazer do meu desespero em vão. Do meu corpo que de fato pedia o seu e do seu corpo que de fato pedia o meu, só restaram as marcas em nossas roupas e a frustração de não ter sido como um dia, cada qual independemente solitário em algum lugar, imaginou.
Mas tão certo quando a memória olfativa do que você bebeu na noite passada e do primeiro perfume que escolhi para usar, foi a mistura destes cheiros impregnados na minha pele e no meu cabelo, bilhete seu dizendo que não foi sonho, não adianta fechar os olhos e reimaginar a cena em outros lugares, com outras falas e gestos.
É certo que por todos os lugares para onde fugirei, encontrarei algo de você onde me refugiar.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Sobra de sombras.

Para Marcelo

São os olhos a lâmpada do corpo. Se os teus olhos forem bons, todo o seu corpo será luminoso ; se porém, os teus olhos forem maus, todo o teu corpo estará em trevas. Portanto, caso a luz que em ti há sejam trevas, que grandes trevas são.
(Matheus 6: 22-23)


No princípio fez se a luz, que as sombras aos poucos foram consumindo aos longo dos dias em que aqui permaneci. O que me restou foi um fino feixe de luz que se desprendia de um buraco feito na parede, por uma bala. A muito tempo já não ouço o barulho das balas se perpetuando pelo ar e isso me doí como uma rajada de tiros. Elas gritavam que ainda restava alguma vida a ser eliminada, mas agora, esse silêncio sussura que estou só e que provavelmente devo estar morto. Mas ainda sinto a minha pele escorrendo pelos meus ossos e o meu sangue escorrendo pelos meus lábios. E a cada dia essa sensação de vida se torna estranha.

Meus olhos se atrofiaram, necessitados de cores, mas ainda consigo ver através das sombras: outras sombras. E as lhe dou cores, das minhas lembranças. De dias passados, quando tudo era luz, quando fazíamos fotosintese: transforamando tudo que era cinza e pesado em tudo que podia ser leve e alegre. Balão de gás. Lacrimogênio. Lágrimas secas que sustentam as linhas do meu rosto, cicatrizes feitas pelo tempo e feridas das quais ele jamais secará.

Sei que por aqui há um espelho, sinto medo de encontrá-lo, tal como um monstro que se esconde por detrás das sombras. Eu sei que já não devo ser o mesmo e o que os meus olhos irão ver não será o que um dia fui. Nem mesmo a sombra, por mais irônico que seja. Mas temo. Minha mãe dizia sempre, acho que ainda lembro, que a gente sempre se torna o que tem em nossa volta.

Algum tempo que eu não sei medir quanto, senti o gosto da luz, e era doce como açucar e mel. Minha lingua já acostumada com o sabor da solidão, se assustou, mas logo se entregou a esse prazer como o restante do meu corpo. Sei que ela me atravessou e me aqueceu, mas mais do que isso, trouxe meus sonhos de volta. Estremeci. Fechar os olhos e se entregar aos sonhos onde tudo poderia ser como não é e não apenas às minhas lembranças de tudo que foi e não será mais, era mais do que eu precisava. Então me entreguei definitivamente.

Hoje, o que havia sobre minha cabeça, desabou. Fechei os olhos e senti lentamente aquela dor inundando o meu corpo. Não era a dor provocada pelos escombros quebrando os meus ossos. Talvez eu não tivesse mais ossos, nem massa cárnea, mas a dor era como milhões de lanças fatiando o que existe de você. Sorri, sentia tanta saudades do que havia além daquela fresta na parede que esqueci completamente de que morria.

Então olhei, antes de desaparecer, para o espelho.

domingo, 26 de julho de 2009

O que não cabe em linhas.

Para Leandro, com quem compartilho letras & dores

Se em linhas
coubesse o amor
então
ele seria pouco
Como ele
nunca é pouco
é muito
ainda existirão
pessoas como eu e você
que não desistem
de minimizá-lo
em poesia.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

So What.

Para B.B

12 segundos, um dia, 365 anos.
(ou todo o amor que houver nessa vida)


Sim, era Coltrane
pulmões dilascerados de tanto amor & tantos cigarros
elevando sua dor a mezzo forte noite após noite, em algum lugar esquecido pelo tempo em New Orleans onde
exausto
descansava sua solidão em algum seio prostituído que tocava
Art Blakey exorcisando toda a pureza do silêncio
com todos os corações apaixonados no ritmo da saudade.

Você disse que quando os pulsos são cortados o sangue não mancha o mundo & rasgado é o quadro de Da Vinci
e que eu era a heroína do seu jazz.
Loucura impressa em tantas poesias & prosas
misturas alucinógenas de paixão
chama incendiária que ainda queima
na mais tenra memória
de todos os sambas em prelúdio & tangos anacrônicos.

Ainda espero esse trem azul como todos os blues
nos salvar.

Sim, é Coltrane
Desgraçadamente nos lembrando
que a love supreme
sempre vai tocar na próxima estação do coração.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Você sorriu e deixou cair dos seus lábios muitas verdades das quais prefiro me deitar com as mentiras
bêbadas
embaladas por muitos planos retângulos
móbile
sonhos de padaria

domingo, 19 de julho de 2009

Cenas de algum filme classe B.

- Nem pense em acender isso aqui dentro, não suporto cigarro.
-Parece uma cena de cinema, acredita?
-Que cena?
-Morangos Sivestres, ela vai acender o cigarro e o cara que tá dirigindo fala a mesma coisa. Um chato, igual a você.
- Pelo menos foi inteligente da parte dele. E saudável.
- Ele era velho, sacana e um pouco reclamão. Igual a você.
- Continue me elogiando e te deixo na próxima esquina, duvida?
- Falando nisso, onde é que tá me levando?
- Não sei, prá sua casa, pode ser?

- A quanto tempo isso não vê uma limpeza?
- A quanto tempo você não pára de reclamar de algo? Não ligo para essa superficialidade, até porque nem tenho tempo e se tivesse nem limparia. Veja bem, prá que limpar tudo isso se eu posso perder esse tempo, na verdade ganhar, vendo meus filminhos medíocres do Bergman ahn? Ou folheando meus livrinhos patéticos do Proust, coleção completa hein. Ou ouvindo as idiotices da Nina Simone, sei lá, esse pessoal que eu escuto não presta.
-Mas, olha pro seu redor, tudo imundo, como consegue se sentir bem aqui? Tem até comida estragada, vai ver que quer companhia de ratos e vermes. Dá tanto valor à suas coisinhas bobinhas que nem percebe que vai perdê-las em breve.
- AÍ, CALA A BOCA! Não sabe do que fala. Eu me sinto bem assim e pronto, tá insatisfeito? A porta da rua é a serventia da casa, ou qualquer coisa do tipo. Se for, fico com pena, não sabe o que vai perder.
- Convencida e porca.
- Velho e reclamão

- Tira a calcinha.
- Só depois dessa música.
- Posso então ficar te beijando enquanto isso?
- Se contenta com tão pouco, tenho dó. Não quero ter a sua idade, morro antes. Depois a gente chega nesse ponto, pedindo carinho se pode dar uma boa trepada, do tipo espetacular. Sente prazer com carinho ou com o que tem dentro da minha calcinha? Vai ter que esperar por um dos dois querido, porque juntos não rolam.
- Não pretendo esperar por nada, perdi o tesão.
- Percebi, quer tentar mais uma vez? Juro que fico calada, só abro a boca pro básico. To me sentindo meio que culpada. E uma vaca também.
- Vaca não é. Porca sim.
- E você velho. Porra, agora eu to com tesão, e aí?
- Vai ter que esperar, querida.


- E aí, gostou?
- Foi legal, mas poderia ser melhor.
- Reclamão.
- Porquinha.
- Me beija?
- Ué, morria antes disso, não morreria?
- A gente já deu a boa trepada, a espetacular. Pode rolar carinho agora, não pode? Vou ficar te beijando, assim muda de ideia.


- Já vai?
- É, tenho que resolver uns problemas. Quando se tem minha idade, é o que mais se tem.
- Quando se tem a minha idade, é o que menos se tem. É isso o que quis dizer?
- Menos, por favor. Longe de mim comparar os meus problemas com os seus. Não tem família, não tem emprego, não tem doença alguma típica dos 50 e tantos anos. Só é porca.
- Te deu menos tesão o fato de ser ou não porca? Que eu saiba foram meus livros que endureceram o seu pau, foi as minhas canções que te fizeram segurar por mais de uma hora o teu gozo e os meus filmes te fizeram querer mais e mais ser mais do que um velho reclamão de 50 e tantos anos que não suporta a vidinha que leva. To errada?


- Dinheiro ou cheque?
- Dinheiro.
- Aproveita e compra uns filmes alemães.
- Tá bom, eu compro. Pensei nessa semana mesmo. Herzog, acho.
- É, já vi alguns dele, vale a pena. E, paga uma faxineira tá? Qualquer um perde o tesão numa imundice dessas.
- Tá, tá, vai embora agora, vai! To parecendo uma puta com tudo isso.
- Você só é
- Nem termina a frase vai. Você sabe o que é, é o que importa né?

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Tátil.

Conter o tempo entre os dedos & deixá-lo escorrer pelas coxas, fome antropofágica iludindo toda a farsa antropológica
Toque mais do o que meu corpo, dedilhe algum samba sobre meu coração
porque hoje eu vou lhe oferecer mais do que
beijos perdidos na órbita dos teus olhos
vou lhe oferecer
todas as canções de amor que ainda não escrevi.

domingo, 12 de julho de 2009

Uma lembrança qualquer.

Estávamos ali, como se não estivéssemos, naquele bar onde éramos estranhos entre tantos outros estranhos, luz negra impregnando nos detalhes brancos da minha bolsa e no seu tênis importado daquela marca transadíssima, que me incomodava a visão todas as vezes que eu era obrigada a fugir de você e olhar para o chão, uma lembrança qualquer, espaço em branco em que eu poderia ter escrito algo a mais, diferente das reticências. Você não me olhava ainda com esse olhar de desespero e eu não te olhava ainda com este olhar de pena e de cansaço, mas meu olhar era de qualquer coisa como algo desprendido de qualquer lugar, mas sua mão se perdia no meu cabelo mal lavado e embaraçado, tateando minhas ideias vagas , prendendo meus sonhos entre seus dedos e os deixando ali, jogados e abertos como uma fruta podre. Um punk esbarrou em você de propósito, eu disse, é o que dá vir aqui com um tênis desses e uma cara tão lavada dessas e você, rindo, dizendo que era o único lugar aberto aquela hora e a gente tem que beber hoje a qualquer custo não importa se a gente usa um tênis importado e se não somos darks, claro , eu quis morrer e não te disse, você quis me beijar mas eu evitei, disse, acho que não somos bem vindos aqui.
Sorri pros punks, numa tentativa de parecer mais amigável e entrosada, do tipo de garota que só está lá porque se sente a vontade entre eles e não porque entrou pelo impulso de um cara escroto e pelo terrivel e mortal tédio de se estar ao lado de quem não se ama assim tão completamente, erguendo de uma maneira ridícula o meu copo de cerveja enquanto eles se aglomeravam em volta da tequila. Olhei para você que me condenava na falta de um sorriso, mas foram 3 garrafas de cerveja e você nem disse o que queria afinal de contas, eu mesma esqueci que estava ao seu lado, achava que era um estranho incômodo que me pagava as cervejas, mas quando me beijou, trouxe-me para a realidade. Você era o que me restou.
Não era pena de você, naquele momento, era pena de mim entende?De tanto lutar, procurei algo em que pudesse descansar meu corpo logo após a última batalha, ainda sangrando com um tiro próximo do coração, ali cravado na cravícula, a maldita cicatriz que não vai sumir como as outras, que vai doer no frio do verão, não importa que remédios eu tome, não importa que abraços me aqueçam. Fiquei perdida, estendida naquele campo, até que me achasse. Eu não pedi que me salvasse.
Você pegava minhas mãos, as faziam percorrer o seu rosto, carinhos involuntários. Cedi muito mais do que minhas mãos, deixei que meus olhos se fixassem em você, enquanto eu cantava com os demais, uma maneira de fugir do que eu tinha para lhe falar, I kill my baby and it feels so bad/ guess my race is run/She's the best woman that I ever had/I fought the law and the law won/I fought the law and the/Robbin' people with a six-gun, abafar sua voz entre um coral de punks depressivos que se debatiam entre si, muito parecido com o que acontecia ali entre eu e a minha maldita consciência, de te deixar logo no final da música sem motivo aparente, mas e a coragem? Onde está a tal da coragem, da determinação? Onde está minha felicidade, do seu lado incrivelmente bêbada e drogada que mal pode se levantar e se apresentar a mim?
Até hoje não sei.

domingo, 5 de julho de 2009

A mulher do armário

Começa assim.



Você descobre que então viveu 10 anos com uma pessoa e abre os armários e lá descobre uma outra pessoa, diferente dessa que lhe dá beijos de boa noite e dorme ao seu lado reclamando do exaustivo dia de trabalho & do trânsito & da vidinha que levam, e abismado com o que vê ali a sua frente não sabe o que fazer e o que dizer e se é real e se for, se é tão mal assim. Talvez lhe diga desculpas, eu não devia ter mexido em suas coisas assim tão pessoais e tão intro e eu prometo esquecer isso, continuaremos a vida ok, MAS talvez eu faça muitas perguntas a essa do armário, porque.

Acho que nunca soube quem você é, ou foi, ou quer ser.



Aconteceu que abri uma de suas gavetas, saudades quando bate nos faz revirar o que se encontra à frente para saciá-la, fome incontrolável que não se contenta com pouco alimento em pedaços, quer peça inteira dentro dos braços & dos lábios & dos ouvidos, entenda, abri uma de suas gavetas movido pela saudade faminta a uma semana de um corpo ao lado sem reação além de reclamar de muitas coisas e prometer que tudo há de melhorar, há de melhorar sim, mas deixe-me dormir e sonhe que tudo há de melhorar, essa oração silenciosa a algum Deus surdo, que rezo a tanto tempo que já a muito tempo substituiu o meu pai nosso e minha ave maria, há de melhorar meu deus, há-de-melhorar. Abri na esperança de encontrar a mesma pessoa do meu lado, versão do passado da mulher que sumiu dentro de você. Não lembro do vermelho cobrindo o seu corpo, lembro das lingeries negras escorrendo de seus seios porque segundo todas as mulheres neuróticas e você era uma delas, o preto emagrece, mas grande bobagem, que homem apaixonado iria reparar em qualquer coisa a mais além da mulher que ama tal como é desde que se tomou consciência disso? Mas a verdade é que nunca lhe vi de vermelho sob seus vestidos comportados de mulher de negócios que pensa em ter família e recatada nos gemidos sob meu corpo, renda detalhada quiçá francesa e quem se importa com isso agora? Porque ali no fundo, me responde, da gaveta & de você, há essa mancha vermelha em rendas e em decotes e em profundidades desconhecidas por mim?


Me sinto como um assassino, se é que sou, na verdade, se é que eu matei algo.

Não sabia dos seus perfumes secretos, dama da noite, lembrei, aquela flor que se perfuma ao luar. Lembrei das noites que você se esvazia de mim, some sem deixar rastros dos teus perfumes, não destes, dos outros, do meu. E assim vai, são perfumes, saltos altos que valorizam pernas torneadas, as suas das quais me lembro, escondidas em calças sociais, mostradas a mim como pernas muito cansadas de um dia extenso de trabalho. Vestidos delicadamente pequenos de cortes violentamente carnais, vermelho que escorre sobre vermelho, negro que se mistura a tez branca dos escritórios, se escritórios. Maquiagens pesadas para um rosto tão leve, máscara acredito, para a mulher atrás de rímeis & sombras & batons vermelhos. Ou a máscara é essa, digo, a sua ao meu lado, sem maquiagem percorrido de pequenas rugas e imperfeições? Miles Davis, cd escondido ali entre uns livros de auto-ajuda, besteira, cadê o Drummond que te dei? Que Vinicíus de Moraes é esse aqui? Desconheço.

Coração descompassado, olhos brigando com o cérebro, se verdade. Não sei, querida. Assim que chegar, vou pedir que me apresente a dona deste armário. Juro, acho que estou apaixonado pela primeira vez por você.