terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Péssimo dia

Despertou com um forte arrepio pelo corpo, como se inúmeros insetos percorressem demoradamente a sua pele, mas achou que fosse somente o típico frio de uma manhã de segunda feira. Tentou se levantar, mas era como se sua cama fosse um grande imã que a atraía de tal forma que, qualquer esforço seria meramente em vão. Lutou para que uma das pernas pudessem ficar para fora da cama, enquanto a outra lentamente se desgrudava dos lençóis. Após uma verdadeira batalha dantesca, conseguiu enfim apoiar os dois pés no chão e se arrastar até o banheiro para tomar banho, mas no meio do caminho, entre a sala e a cozinha, pôs para fora todo o resultado de um domingo entre quase amigos e desconhecidos agradáveis.Resmungou entre um pano sujo e um rodo jamais utilizado que aquela segunda feira seria uma merda.

-Porra de ressaca do caralho.

Vestiu-se numa velocidade quase maior do que a com que o relógio marcava o seu atraso. Esqueceu sobre a cama a carteira e sua maquiagem. Acabou deixando a si mesma sobre a cama, sem perceber.
Correu pelas ruas acumulando sobre si a poeira do cotidiano daquela cidade que parecia engolir a todos, um grande triturador de sonhos e pensamentos. Um liquidificar de sentimentos e planos sobre as suas imensas avenidas. Precisava chegar a tempo em seu emprego, não era a primeira vez que corria contra o tempo mas era a primeira vez que sentia que seria inútil, que talvez não conseguisse chegar lá. Com vida.
Não adiantaria pegar um ônibus, a cidade estava emaranhada e perdida, sendo engolida por um trânsito caótico e infernal, o que lhe restava era correr até chegar a uma estação de metrô e ter a sorte de não precisar enfrentar fila alguma. Seus sapatos novos pareciam desgastados demais, sua roupa branca parecia refletir o asfalto e o banho que tomara, foi em vão, estava suada e fedendo como um pedreiro ao fim de um dia de trabalho. A maquiagem havia derretido e nesse instante se lembrou que esquecera de suas bases e pós sobre a cama. Quis chorar. Não sabia se a cidade era a culpada, se ela era a culpada ou se a existência do tempo era a grande culpada de toda a merda que lhe acontecia, odiava ter que correr para chegar no horário correto. Sabia que aquele seria um péssimo dia, no final das contas.
E correndo não percebeu que o trânsito então, como um laço mal feito, se desatou de repente, e ela, um mísero ponto tão cinza quanto a rua, estava no meio de toda a movimentação, dentro do coração selvagem de pedra que pulsava. Viu apenas como um borrão vermelho algo a se aproximar tão rapidamente de si que a atravessara. Apenas sentiu o seu corpo estar tão leve que poderia voar sobre todos aqueles carros e cair delicadamente sobre o asfalto quente e seco. Ouviu ao longe pessoas gritando, buzinas enlouquecidas e passos quebrando mais ainda o seu corpo. Não sabia o que estava acontecendo, mas sabia que chegaria muito atrasada e que certamente seu chefe lhe daria um aviso prévio.Não conseguia abrir os olhos para se certificar se estava próxima ao prédio do seu trabalho, o sol estava implacável e algo a impedia de abri-los. Ouviu quase que surdamente algumas sirenes e, quando finalmente conseguiu, com esforço igual ao que teve ao se levantar, abrir um dos olhos, viu ao seu redor várias pessoas e algumas câmeras.
Estava atrasada, estava suja, estava esticada dilascerada numa avenida, estava sem maquiagem e ainda por cima queriam fotografá-la. Amaldiçoou a todos, mas principalmente a ela mesma, por ter esquecido o seu estojo de maquiagem sobre a cama.
Não queria aparecer com aquela aparência fúnebre na capa de qualquer jornal.

-Que porra de ressaca do caralho. - sussurrou antes que o seu dia terminasse. Para sempre.

sábado, 27 de dezembro de 2008

Bravado

Jamais acreditaríamos no final. Mas finais existem e finais sempre vão ter algo de triste, algo de perdido, algo de jamais ter chegado ao paraíso e sentir finalmente que tudo valeu a pena. Mas agora eu só sinto os seus abraços cada vez mais distantes dos meus, você sente os meus lábios mais frios e mais rígidos, eu sinto o seu coração cada vez mais e mais fechado ás minhas palavras e eu sinto o seu corpo cada vez mais seu e não mais meu, então, a gente começa a acreditar que isso é o final.
Eu não disse que seria, você nunca soube que seria, então vamos pagando esse preço caro que é viver os últimos dias como se eles fossem os primeiros dias: dois estranhos tentando se conhecer numa cama enquanto tentam se esquecer do que já viveram com outros, sem coneguir com sucesso, procurando um no outro algo a se amar, algo no que acreditar.Mas encontramos dois corpos suados se misturando e se penetrando. Nada mais do que isso.
Eu queria que fosse, você sempre quis que tivesse sido, então só nos resta esses pedaços que deixamos para trás, alguns sorrisos, algumas sinceridades, poucas lágrimas de felicidade, surpresas agradáveis.Mas o que ficou, o que nos restou mesmo foi esses sorrisos falsos e sarcásticos, essas sinceridades sinceras demais, essas lágrimas após brigas intermináveis e essas surpresas desagradáveis.
Eu tentei vencer, você achou que já houvessemos vencido, mas estamos batalhando ainda. Eu te tenho, você me têm, nós nos temos, e é tão simples e tão puro e, acordamos, eu não te reconheço e você finge o mesmo, e é isso que se resume o pesadelo que vivemos. E porquê, eu te pergunto sempre calado, sempre olhando bem pros teus olhos sem maquiagem, porquê ainda estamos nessa batalha, pelo o quê batalhamos? Olhe para dentro de mim, mas olhe bem e verá todas as feridas dessa guerra, e querida, você também está tão ferida quanto eu, até sangra mais do que eu. Mas e aí, quando vamos dar por vencida essa guerra? Eu procuro algum sinal de paz, como uma bandeira, e eu acho que não vou encontrar.
Todas as músicas cessaram, todas as luzes se apagaram, tudo o que era para ser dito foi dito.
Estamos num paraíso perdido
ou num inferno proclamado?
Não vamos vencer isso.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Coração (samba anatômico)*

Que fosse um samba qualquer, que fosse um adeus qualquer, que fosse sim um amor qualquer. Mas não fora qualquer e, é , eu sei agora por essas ruas e por essa escuridão e por todos esses rostos que me olham despercebidamente tentando entender o porquê dessas lágrimas numa madrugada, mas ah, fodam-se, estão mais bêbados do que eu e então eu até acho que estou paranóica em achar que eles sabem o que é amar, o que é chorar por um amor distante em quilômetros(e perto demais do coração) mas chorar de felicidade e imensa falta e porque, há tanta coisa bela que eu queria que os olhos dele, e os meus junto aos dele, vissem, mas os outros não sabem disso
[ porque eles só sabem beber, fumar & comerem o primeiro rabo que lhes é ofertado.]
Que fosse sim, mais um samba, em prelúdio, em interlúdio, mas que fosse qualquer, que não fosse essa letra saída do dedilhado de um violão desafinado(mas ele também tem um coração meu amor), que fosse uma benção, que fosse belo e que não tivesse fim como a felicidade, mas acontece que eu preciso voltar para casa porque a noite está fria, acontece que o meu coração ficou frio e a coisa mais triste que existe é quando o amor se desfaz
[mas o que se desfaz é a tristeza porque eu mandei a minha saudade tocar você].
Mas que seja um samba, já que não será mais do que isso & é maior do que isso,
é maior que
qualquer coisa
é maior que
o meu peito
é maior,
é maior do qualquer coisa e
a gente só pode ouvir uma vez
essa canção que de nós nasceu.

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* Noel Rosa

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

À uma quinta feira

As folhas me abraçavam enquanto o meu corpo encoberto de terra mas também de desejos se consumia e era sim, era o vinho, eram aqueles sorrisos, era esse seu maldito sorriso que não saía da minha cabeça e esse maldito jagger fica dando adeus a uma terça feira e eu digo até logo quinta ou sexta e não importa porque é
mais um dia que eu não estou com você
é mais um dia que estarei mais perto de você & os meus lábios estão rubis de vinho e de sangue minhas pernas & os meus lábios verdes assim pouco verdes mas o suficientes para que eu diga
para qualquer um e para todos e para mim mesma
& para você e unicamente para você porque eu já disse isso de uma maneira não tão convencional
mas tão emocional e sincera que
tão sincera que ainda repito, nos restos de hoje
nestes restos que estão pelo meu corpo
que eu te amo.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Palavras, apenas.

Eu não consigo escutar o que você diz, é isso, então tudo bem, pode dizer o quanto eu sou um idiota, um completo covarde por não querer ouvir as suas palavras por ter medo de ver o meu mundo, não esse mundo ao redor, mas esse mundo que gira e brilha dentro dos seus olhos, ir aos poucos desaparecendo sem que eu possa tocá-lo novamente, sem que eu possa invadi-lo com suavidade e me sentir tão morador dele quando deste aqui, onde o meu corpo repousa inerte e os meus ouvidos evitam entender as suas palavras que não passam por eles, vão direto ao meu peito para tentarem o rasgar. Mas as palavras, as palavras minha querida, elas são palavras apenas, são letras uma após a outra que formam palavras, palavras que uma após a outra formam frases, frases que uma após a outra formam o que hein? Formam isso que eu sinto, esse medo enorme de te ouvir e sentir um desespero de não morar mais nos seus olhos , que formam isso que você está sentindo, esse vazio desprendido, essa ordem de despejo. Palavras são apenas palavras, querida, o que as fazem ser mais do que isso, o que as fazem ter consistência de lâminas são o que elas querem dizer não por elas, letras apenas, mas pelo o que saí de dentro de você. Ah, eu sei, você jamais entenderia isso com essas minhas palavras, porque são palavras misturadas com esse sentimento que você não quer mais, mas quer, porque precisa dele para continuar e então, querida, não tenha medo de ser covarde, porque eu também sou.
Então só peço que deixe-me entrar dentro desse mundo mais uma vez, a última vez, deixe-me fazê-lo girar, deixe-me fazê-lo brilhar, aí, nos seus olhos para que saiba o quão hipócritas tem sido essas suas letras após letras.
Eu sei que você está me ouvindo, mas eu não consigo ouvi-la, e me sinto completamente aliviado por isso.
Suas palavras, essas que você jorra por seus lábios, são apenas palavras, nada mais do que isso.
Pela primeira vez, eu consigo apreciar esse silêncio vindo de você.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Dores em néon

Neon.



Andava entre os carros, desviando-se deles com extrema habilidade ébria enquanto os seus olhos se enchiam de neon e o seu corpo sumia em plena avenida como se fosse alguma lâmpada que lentamente ia perdendo a força, e somente os seus olhos brilhavam, duas faíscas incandescentes, dois pontos luminosos vermelhos. De neon. Era como um pássaro preso numa gaiola por muitos anos, mas agora ela estava completamente livre, poderia ir para qualquer lugar mas mesmo assim era um pássaro de asas quebradas se debatendo contra uma gaiola de vidro imaginária que, por algum motivo, se quebrara e agora não existia mais qualquer gaiola, ela estava solta e perdida num mundo estranho a ela, onde os carros não entendiam a sua dor e buzinavam loucamente, onde as pessoas que cruzavam com ela não viam que sangrava e se debatiam contra ela, se manchando com aquele sangue e aumentando as feridas, onde a noite caía cada vez mais com um peso maior sobre o corpo exausto e de asas quebradas que ela possuía e que o dia não cicatrizava, onde não se sabia separar mais o que era o sujo do limpo, os humanos de animais.Ela era parte agora desse mundo egoísta, imundo e miserável, e não sabia o que mais lhe doía, se era essa verdade ou suas asas quebradas, dilasceradas.



Gostava da dor de estar presa a sua gaiola, tão diferente dessa de estar livre. Não que fosse uma dor agradável mas era uma dor da qual já estava acostumada, uma dor amiga da qual a confortava,que não a deixava sozinha, ali sempre latejando por todo o seu corpo, sempre a lembrando da condição de pássaro numa gaiola, presa para sempre. Mas essa nova dor era demasiadamente cruel, ela não a sentia. Essa nova dor a abandonava, deixando feridas infeccionadas, pus amarelo escorrendo ora meio rosado pelo sangue ora meio preto pela sujeira das ruas por todo o seu corpo e por dentro dele.Era a sua maneira de dizer que ela estava abandonada a sua própria sorte, a seu próprio corpo e nem ela, a dor, queria estar com ela quando a noite chegasse, nem a dor, repetia para si mesma, teria piedade do seu novo destino traçado com lápis sobre um guardanapo. Ela via aquelas feridas, aquele sangue e as suas asas quebradas, mas não sentia de fato dor apesar de sentir essa dor dilascerando parte por parte do seu corpo de uma maneira tão insuportável que, já não sabia se era humana ou um animal, se era limpa ou suja. Sabia apenas que agora aquele era o seu mundo e que devia se acostumar a ele como todos os outros.



Então, descobriu algo ao encher seus olhos de néon pela primeira vez.



Sua dor tinha medo da luz, como todos os monstros noturnos que se escondiam da claridade do dia, luz do sol que não existia mais naquele mundo. Iluminado apenas pela artificialidade do néon.

Se debatia dentro dela, ela sentia a sua dor sentir dor, urrar de dor, quase podia ouvir sua dor pedir misericórdia.E todos os dias, que não eram dias eram sempre noite e madrugada, ela enchia seus olhos de néon como os enchia antes, quando era um pássaro perdido naquela noite suja, e não sabia dizer que dor era aquela que lhe queimava.

Agora sabia.

Se lembrou dos dias da gaiola, onde se esbaqueiava contra as pequenas grades de metal e vidro, mas que não sabia o que era se sentir sozinha.Havia aquela dor, a dor de suas asas quebradas como a de todos os outros que também estavam presos em gaiolas vizinhas e semelhantes, tão sozinhos como ela e a sua dor.Mas agora sua dor era ela, numa gaiola de carne e sangue, dependente dela. Dependente da escuridão e dos medos para se alimentar e se fortalecer. Pela primeira vez sentiu algo como um prazer( uma explosão de orgasmos múltiplos, se ela soubesse o que isso era isso), de ter o poder de controlar a sua dor, de humilha-la como antes ela fora humilhada, não ia lhe dar a escuridão e nem medos. Era dona da sua dor e somente ela decidiria quando destruir aquela gaiola e deixá-la livre.
Rompeu a escuridão daquele mundo e se inundou de néon.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Poesia&prosa


And those were the days of roses, poetry and prose
and Martha all I had was you and all you had was me
there was no tomorrows, we'd packed away our sorrows
and we saved them for a rainy day.
(Tom Waits-Martha)




Nos tocamos, frações de segundos eternos e mais eternos do que qualquer outra coisa que exista, mais eternos do que suas poesias e mais eternos do que minhas prosas &

a sua voz ainda permanece por todo o meu corpo que ainda é e continuará em brasas
(eternas)
incenciando os meus sentimentos
(eternos)
acelerando os meus delírios & compondo meus sonhos
em letras em prosa em poesia em canções que
quisera eu ter escrito á você
que vai me tragando que vai me colorindo em tons matinais
eu que sou um mosaico decomposto e desbotado
eu que
nego constantemente mas é inútil negar é um absurdo negar e é errado negar
todas essas coisas todas essas palavras que são inertes & sem nenhuma poesia
porque ela, a poesia
esté em ti e ficou neste espaço de sombra que perdura entre o meu desejo e o teu amor
por onde vão deslizando os meus sonhos
as tuas poesias
as nossas prosas

(e somos poesias e somos prosa e somos literatura)

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Passinhos felinos.

Para Bernardo



Sempre assim.



Entra felina pela sala, aturdida talvez, vai se esquiando pelos móveis da sala até encontrar o meu quarto e esbarrar no cinzeiro transbordando de cigarros e papéis amassados, de recados antigos que ela deixara na geladeira. O carpete persa-chinês muito imundo agora, de cigarros, papéis e as roupas dela que despe meio ávida, meio tímida. Finjo como sempre que estou dormindo tão profundamente que não ouço os passos trôpegos dela seguidos de alguns soluços indo em direção a minha cama, onde se enfia por debaixo dos lençóis com uma delicadeza quase que infantil, de criança com medo do escuro, que se enfia entre os pais de uma maneira que não os acorde, para que eles não a mandem para o quarto novamente, enfrentar o bicho papão. Vai se acomodando, encontrando uma posição confortável até que um de seus braços fique jogado sobre mim num possível abraço. Sinto o cheiro de outros sobrepostos ao cheiro que o corpo dela emana, cheiro de saliva e de gozo, desodorantes de farmácia e loções após barba. Então durmo.

Acordo e finjo surpresa ao encontrá-la ao meu lado e até consigo esboçar um sorriso quando ela acorda sorridente e me pergunta que horas são, e eu lhe digo olhando para aqueles olhos borrados de rímel e delineador que formam um círculo negro em volta deles e para aquele rosto de pele tão marcada por pequenas rugas e remanescências juvenis que formam um belo contraste, "são 11 da manhã, eu tenho que ir trabalhar mas antes eu vou preparar o teu café quase almoço que vai ser o seu jantar" e ela ri e eu sinto aquele hálito de gato morto e podre de vodka, "posso dormir até as 3? Eu juro que arrumo a sua casa antes de você chegar" "Claro que pode, não precisa se preocupar com isso", mas ela vai dormir até as 7 da noite, quando vai se levantar e ir caminhando desengonçada com os seus saltos e apenas eles do quarto até o banheiro, onde vai se olhar no espelho e se assustar ao ver que ao redor dos seus olhos de mel e fel está cinza nublado e sua pele amarelo urina.E vai chorar sentada na privada, e eu acho que é pelo mesmo motivo pelo o qual ela está li sentada. Ela rouba uma das minhas camisas que estão jogadas do cesto de roupa suja e com aquele andarzinho de felina ferida vai esquentar a comida que deixei pronta esperando que fosse seu almoço mas como sempre, é sempre o seu jantar e vai fuçar nas minhas gavetas alguns trocados para o táxi, se tiver sorte, ou para o ônibus, se tiver azar. Volta para a cozinha e desliga a panela e a deixa sobre a mesa com uma colher, que, aos poucos, vai rechando e levando a boca enquanto vai lixando as unhas dos pés. Mal termina de comer e corre para o banheiro, "quer morrer é?tomar banho quente depois de comer?" "relaxa, até agora não morri querido", engraçado como ás vezes eu queria encontrar o corpo dela ali, debaixo do chuveiro para poder rir amargurado e dizer o tão clichê "eu te avisei querida". Deixa a porta aberta durante o banho e a tv da sala ligada no noticiário, onde, saí correndo para ver a alta do dólar, talvez para incrementar o papinho de mulher-inteligente-que-sabe-que-o-dólar-está-a-2,25, quem sabe, alguns homens devem gozar melhor sabendo disso. E isso me irrita porque acaba molhando todo o chão da sala que,por sua vez, denuncia a saída dela, marcas de saltos muito altos sob pernas bem definidas, porque eu ainda tenho a esperança de encontrá-la em casa ainda, isso quando não a encontro na portaria. Eu chegando exausto e ela saindo recomposta, outra mulher dentro de um vestido do qual tão bem reconheço deixando pelo ar o perfume dela que está cravado na minha pele, uma visão, um flash de néon que me atravessa e leva consigo meus sorrisos e um "boa sorte dessa vez".

-Mas não precisa me esperar hoje à noite,não volto.
-Caso volte, sabe onde a chave sempre está.
-Mas eu não vou voltar.
NÃO
VOU
VOLTAR.

E assim, como sempre, ela vai.Passos firmes de quem não irá voltar com passinhos de felina atropelada, felina vira latas que é, com esse papinho de que "hoje eu não vou voltar porque eu encontrei alguém melhor que você, o homem da minha vida, e eu vou ficar com ele e eu sei que vou ser completamente feliz", mas a vida dela acaba todas as noites e amanhã será outra vida, será outro homem a fazê-la feliz, porque ela acha isso, porque acha que faz ALGUÉM feliz, e é a isso que ela se agarra. Felicidade querida não é ver o sorriso de alguém quando te come, eu deveria ter dito antes, talvez hoje.E ela volta, desmanchada e com a noite nos olhos e com " tive pena de te abandonar, porque eu sei que você não vai sobreviver sem mim, eu sei disso.E no fundo eu te amo, não tanto quanto você, mas eu tenho pena, é isso.", isso que diz com os lábios cheios de vodka e gozo alheio que, queriam que fossem os meus lábios a pronunciarem numa canção tão suave que acalmaria a sua alma inquieta, mendiga de farol por amor&atenção.
Mas eu nunca digo nada, estou ali dormindo, fingindo estar sonhando com algo melhor que isso, tê-la aos pedaços.

Eu a odeio. Odeio por provocar em mim esse maldito amor incondicional que não me permite esconder a chave em outro lugar, essa piedade que explode a cada movimento dela que implora por proteção e compreensão pela sua procura errante pela noite por alguém que, como eu, a ame com estes olhos borrados de negro e cinza sobre um amarelo urina, que veja nas suas rugas traços perfeitos e nas suas espinhas inflamadas a sua juventude aflorada num sorriso tão doce e tão puro apesar do cansaço do contorno dos seus lábios e que cure os seus pés, pés felinos, de passinhos ágeis e delicados, fatais e atordoantes. Que só veja nela o que eu vejo todos os dias quando ela acorda sorridente fazendo que mesmo que eu não queira, sorrir ao ver a mulher da sua vida. Por isso ela sempre vai voltar. Por isso ela sempre sorri mesmo sem ter um motivo para sorrir quando desperta.Porque vê nos meus olhos a mulher que ela sempre quis ser para mim, e já é sem perceber.
Mas me calo, nem digo nada a ela. Eu a amo assim cada dia mais com esses seus passinhos felinos em direção a minha cama.