terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Passinhos felinos.

Para Bernardo



Sempre assim.



Entra felina pela sala, aturdida talvez, vai se esquiando pelos móveis da sala até encontrar o meu quarto e esbarrar no cinzeiro transbordando de cigarros e papéis amassados, de recados antigos que ela deixara na geladeira. O carpete persa-chinês muito imundo agora, de cigarros, papéis e as roupas dela que despe meio ávida, meio tímida. Finjo como sempre que estou dormindo tão profundamente que não ouço os passos trôpegos dela seguidos de alguns soluços indo em direção a minha cama, onde se enfia por debaixo dos lençóis com uma delicadeza quase que infantil, de criança com medo do escuro, que se enfia entre os pais de uma maneira que não os acorde, para que eles não a mandem para o quarto novamente, enfrentar o bicho papão. Vai se acomodando, encontrando uma posição confortável até que um de seus braços fique jogado sobre mim num possível abraço. Sinto o cheiro de outros sobrepostos ao cheiro que o corpo dela emana, cheiro de saliva e de gozo, desodorantes de farmácia e loções após barba. Então durmo.

Acordo e finjo surpresa ao encontrá-la ao meu lado e até consigo esboçar um sorriso quando ela acorda sorridente e me pergunta que horas são, e eu lhe digo olhando para aqueles olhos borrados de rímel e delineador que formam um círculo negro em volta deles e para aquele rosto de pele tão marcada por pequenas rugas e remanescências juvenis que formam um belo contraste, "são 11 da manhã, eu tenho que ir trabalhar mas antes eu vou preparar o teu café quase almoço que vai ser o seu jantar" e ela ri e eu sinto aquele hálito de gato morto e podre de vodka, "posso dormir até as 3? Eu juro que arrumo a sua casa antes de você chegar" "Claro que pode, não precisa se preocupar com isso", mas ela vai dormir até as 7 da noite, quando vai se levantar e ir caminhando desengonçada com os seus saltos e apenas eles do quarto até o banheiro, onde vai se olhar no espelho e se assustar ao ver que ao redor dos seus olhos de mel e fel está cinza nublado e sua pele amarelo urina.E vai chorar sentada na privada, e eu acho que é pelo mesmo motivo pelo o qual ela está li sentada. Ela rouba uma das minhas camisas que estão jogadas do cesto de roupa suja e com aquele andarzinho de felina ferida vai esquentar a comida que deixei pronta esperando que fosse seu almoço mas como sempre, é sempre o seu jantar e vai fuçar nas minhas gavetas alguns trocados para o táxi, se tiver sorte, ou para o ônibus, se tiver azar. Volta para a cozinha e desliga a panela e a deixa sobre a mesa com uma colher, que, aos poucos, vai rechando e levando a boca enquanto vai lixando as unhas dos pés. Mal termina de comer e corre para o banheiro, "quer morrer é?tomar banho quente depois de comer?" "relaxa, até agora não morri querido", engraçado como ás vezes eu queria encontrar o corpo dela ali, debaixo do chuveiro para poder rir amargurado e dizer o tão clichê "eu te avisei querida". Deixa a porta aberta durante o banho e a tv da sala ligada no noticiário, onde, saí correndo para ver a alta do dólar, talvez para incrementar o papinho de mulher-inteligente-que-sabe-que-o-dólar-está-a-2,25, quem sabe, alguns homens devem gozar melhor sabendo disso. E isso me irrita porque acaba molhando todo o chão da sala que,por sua vez, denuncia a saída dela, marcas de saltos muito altos sob pernas bem definidas, porque eu ainda tenho a esperança de encontrá-la em casa ainda, isso quando não a encontro na portaria. Eu chegando exausto e ela saindo recomposta, outra mulher dentro de um vestido do qual tão bem reconheço deixando pelo ar o perfume dela que está cravado na minha pele, uma visão, um flash de néon que me atravessa e leva consigo meus sorrisos e um "boa sorte dessa vez".

-Mas não precisa me esperar hoje à noite,não volto.
-Caso volte, sabe onde a chave sempre está.
-Mas eu não vou voltar.
NÃO
VOU
VOLTAR.

E assim, como sempre, ela vai.Passos firmes de quem não irá voltar com passinhos de felina atropelada, felina vira latas que é, com esse papinho de que "hoje eu não vou voltar porque eu encontrei alguém melhor que você, o homem da minha vida, e eu vou ficar com ele e eu sei que vou ser completamente feliz", mas a vida dela acaba todas as noites e amanhã será outra vida, será outro homem a fazê-la feliz, porque ela acha isso, porque acha que faz ALGUÉM feliz, e é a isso que ela se agarra. Felicidade querida não é ver o sorriso de alguém quando te come, eu deveria ter dito antes, talvez hoje.E ela volta, desmanchada e com a noite nos olhos e com " tive pena de te abandonar, porque eu sei que você não vai sobreviver sem mim, eu sei disso.E no fundo eu te amo, não tanto quanto você, mas eu tenho pena, é isso.", isso que diz com os lábios cheios de vodka e gozo alheio que, queriam que fossem os meus lábios a pronunciarem numa canção tão suave que acalmaria a sua alma inquieta, mendiga de farol por amor&atenção.
Mas eu nunca digo nada, estou ali dormindo, fingindo estar sonhando com algo melhor que isso, tê-la aos pedaços.

Eu a odeio. Odeio por provocar em mim esse maldito amor incondicional que não me permite esconder a chave em outro lugar, essa piedade que explode a cada movimento dela que implora por proteção e compreensão pela sua procura errante pela noite por alguém que, como eu, a ame com estes olhos borrados de negro e cinza sobre um amarelo urina, que veja nas suas rugas traços perfeitos e nas suas espinhas inflamadas a sua juventude aflorada num sorriso tão doce e tão puro apesar do cansaço do contorno dos seus lábios e que cure os seus pés, pés felinos, de passinhos ágeis e delicados, fatais e atordoantes. Que só veja nela o que eu vejo todos os dias quando ela acorda sorridente fazendo que mesmo que eu não queira, sorrir ao ver a mulher da sua vida. Por isso ela sempre vai voltar. Por isso ela sempre sorri mesmo sem ter um motivo para sorrir quando desperta.Porque vê nos meus olhos a mulher que ela sempre quis ser para mim, e já é sem perceber.
Mas me calo, nem digo nada a ela. Eu a amo assim cada dia mais com esses seus passinhos felinos em direção a minha cama.