domingo, 27 de julho de 2008

Cama desarrumada

Eu pronuncio teu nome,nesta noite escura,e
teu nome me soa mais distante que nunca.Mais distante que todas as estrelas e mais
dolente que a mansa chuva
(Federico Garcia Lorca)

Melhor desnascer do que ver esta cama desarrumada, um vazio permanente e doentio que amassa os lençois tão caros que somente minhas mãos sentiram a delicadeza e a maciez dos linhos intercalados que formam a tua pele alva cálida e alinhada á minha pele apenas.O quarto revirado tanto quanto eu por dentro e por fora deste corpo-pensamento, mostra as roupas espalhadas pelos cantos da minha memória que são essas suas peças intímas indecifráveis sobre as minhas assim não tão intímas, meu cd's e sonhos quebrados em músicas que nunca mais serão ouvidas inteiras novamente, mas apenas em pedaços que não voltarão mais a serem inteiros, assim talvez como eu e você, em pedaços ainda menores do que nos sobraram dos pedaços que éramos antes de nos encontrarmos inteiros um do outro.Fotografias rasgadas pela metade nos separando mais ainda do que estamos, eu em alguma parte esquecido onde teus olhos não podem me alcançar e você debaixo da cama entre a poeira dos dias que foram e a escuridão deste meu peito amargurado e angustiado por viver satisfeito com a metade do seu amor, que não é nem a metade da sua vida.Nossos sapatos lado a lado denunciam nossos pés nus que caminham por ruas diferentes e que afinal não nos levarão ao mesmo lugar e a lugar algum.A porta que não se fecha e que não se abre inteiramente bate continuadamente de madrugada (com o sol nos meus olhos), insistindo nessa falta tão seca quanto as flores no jarro da mesinha de cabeceira, onde guardo todas as cartas que escrevi e que ecoam tanto quanto as que não escrevi e que agora gritam para serem escritas, mas a quem eu as enviaria se agora o que me resta é uma cama desarrumada pela última vez que
fui mais do que pedaços e poeira
que você foi mais do que roupas espalhadas e músicas quebradas
que fomos mais do que fotografias rasgadas e flores secas
Fomos uma cama desarrumada.

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Para se perder no abismo que é pensar e sentir II

Não sei traduzir o porque ou como de ainda enxergar você no meio de tanta luz e prédios vestidos de preto, escondidos na noite daquela cidade imensa e silenciosa apesar dos carros e todas aquelas pessoas tão solitárias quanto eu ou você.
Como eu queria que tivesse me deixado te levar para o meu lugar de saudade e que tivesse vivido um pouco mais desta noite comigo. Parte minha, vida, que queria ter te apresentando pessoalmente depois de algumas longas conversas e cigarros e doses de qualquer coisa que me deixe distante do que sou.
Te levaria aos meus sonhos mais vazios que ficaram por lá e tudo que construi de mais sólido. Teria te ensinado a viver e entender aquela dança de luzes brancas e vermelhas tão confusas, tão simples que você já deve ter se esquecido, certamente.
Apresentaria o meu passado, o que eu fui e o que eu conheço que não está tão perto. Assim como você, mais longe do que eu gostaria e mais perto do que eu possa prever. Você que eu não conheço tanto ou quase nada,ou que conheço tanto e que conheço mais do que qualquer outra pessoa.
Foi tudo tão rápido que você nem levou algo deste pretérito com você, nem ao menos alcançou o que ele carrega de belo e também frágil. Se na sua memória ficou algum filme antigo em preto e branco, talvez na minha ainda seja o último filme em cartaz:
Para se perder no abismo que é pensar e sentir.

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Outros tão outros de si mesmos

Para Carol.
(para se ler ouvindo Get Together-Madonna)
Sozinhos.
Tocaram-se e uniram-se.
Juntos.
Ainda assim sozinhos.
(Hilda Hilst)


Sem qualquer expectativa e direção ou motivo eles entram na primeira boate que vêem aberta.Nunca haviam se visto antes daquela noite quando esbarraram-se na entrada violentamente como se soubessem que deveriam entrar ali.Trocaram um olhar tão absoluto quando a certeza que tiveram:Seriam tão outros de si mesmos nesta noite.
Se distanciaram e ela vai até a pista e aos poucos vai se entregando ao ritmo da música, totalmente desarmada e indefesa de todos aqueles olhares furtivos que desnudavam sua confiança na personagem aparentemente feliz e despreocupada que vestia, enquando seu corpo ia desenhando suaves formas no ar.Tenta esboçar um sorriso, qualquer sorriso, mas é inútil.Não consegue mais mentir para si mesma.Está cansada e fecha os olhos, esperando talvez, quando abri-los, se ver em outro lugar.Melhor.
Ele tenta se distrair e ignora-la, mas aquele olhar não sai do seu pensamento, porque aquele olhar carregava cansado o peso de algo que ele sabia exatamente o que era por ser algo tão óbvio em seu próprio olhar: Um apelo desesperado para crer em algo.
Quando abre seus olhos entre tantos outros olhares é o dele que encontra como se houvesse encontrado o seu próprio olhar refletido em um espelho.Perpertuaram este olhar que aos poucos os fez se aproximarem lentamente até que apenas o som de suas respirações ofegantes fossem ouvido em meio aqueles ruídos secundários.Não houve qualquer palavra porque eles já sabiam o que levou um e outro a estarem ali: O desejo de se encontrarem dentro um do outro.
Ele a segurou pela mão e a guiou para fora daquele lugar como se a guiasse numa valsa.E ainda sem que ninguém pronunciasse qualquer palavra, fundiram seus corpos e seus espíritos em um só ser enquanto seus corações tentavam suportar o êxtase que unia suas solidões naquela rua tão isolada e fria.Sentiram suas lágrimas percorem por suas faces até que se encontrassem e se unissem em apenas uma.
-Queria não ter feito isso.Ainda mais porque eu procurei em você algo para amar.
-Eu também procurei isso em você.Nos procuramos e talvez nem tenhamos encontrado isso, essa coisa que deveríamos amar.
-Por um dia eu queria deixar de acreditar nisso.Que o amor existe, esse tipo de amor que nos fez chegar até aqui, porque queríamos encontra-lo.
-Por esta noite poderíamos esquecer disso.Ser outras pessoas do que somos, procurar outra coisa para sentir, topa?
Assentiu.Então seguiram de mãos dadas por aquelas ruas desérticas preenchidas por néons que lhes davam alguma vida enquando falavam de tudo menos de suas vidas e seus nomes.Sabiam que amanhã seriam novamente os mesmos que abandonaram numa esquina qualquer, queriam viver aquela noite como outros, correndo e dançando e rindo como se nada pudesse os separar.
E reteram o tempo em seus dedos que teciam lentamente as horas, prolongando aquela noite que jamais teria fim, mesmo após o seu fim.
-Talvez, você seja a mulher da minha vida nesta noite.
-Dessa sua vida ou da outra?
-Das duas.
-Mas amanhã estaremos mortos, seremos outros diferentes do que somos agora.Você não vai me amar amanhã como eu também não vou te amar.
-Esqueça isso, esse amanhã que não tarda em chegar, mas que não vai nos atingir.Acredite, vivi nesta noite o que eu jamais iria viver durante toda a minha vida.Morro hoje, ressuscito outro amanhã, o que importa?Fui feliz, isso que importa.
-Também fui feliz, só queria que isso durasse para sempre.
-Mas essa noite vai durar para sempre.
Abraçaram-se enquanto o sol ia nascendo e fazendo morrer aquela noite em que puderam ser livres de qualquer imposição de suas vidas.Não houve despedida.Houve apenas a vontade de nunca se encontrarem agora tão outros do que foram.
Após esse encontro o resto foi um eco de tudo aquilo que não foi, pois passou como sempre passa aquilo que queremos para sempre.

sexta-feira, 4 de julho de 2008

Véspera do dia em que de repente enlouquecerei

Para Gabo.
As portas batem as toalhas voam
o dia se esbaqueia como um pássaro dentro de casa
(ou uma lembrança
dentro da casa)
Véspera do dia em que de repente enlouquecerei
(Manhã-Ferreira Gullar)
Acho que estou enlouquecendo.
Ou estou voltando a ser lúcido.
Foi assim:
Comecei a ter lapsos de memória, poucos inicialmente, mas que com o tempo foram se tornando cada vez mais constantes e preocupantes.Letras de músicas, filmes, livros, endereços.Depois foram os nomes dos meus amigos, dos colegas de trabalho, namorada, cachorro, vizinhos e familiares.Aí me esqueci dos meus amigos, dos colegas de trabalho, namorada, cachorro, vizinhos e familiares.Fui esquecendo de mim, de quem eu era.
Preocupados com tal situação, meus pais resolveram me levar a vários especialistas a fim de descobrirem o que me aflingia.Todos os médicos foram unânimes:Eu não tinha absolutamente nada, mesmo que alguns deles ainda achavam estranho o fato de um jovem de 25 anos ter esses lapsos sem apresentar qualquer dano cerebral.
Mesmo assim, continuei me esquecendo das coisas.Esquecendo de fatos marcantes da minha infância e da minha adolescência ou fatos recentes, como o que eu acabei de fazer há 10 minutos atrás.Minha mãe, no auge de sua angústia ao me ver assim, teve uma idéia: Colou por todas as paredes de casa fotos de tudo o que fosse relacionado a mim, com bilhetinhos explicativos.Me dera também uma agenda, para que eu anotasse tudo o que havia feito no meu dia.
Como se houvesse operado um milagre, parei de esquecer.Lentamente as lembranças foram voltando aos seus devidos lugares, graças a todas aquelas fotos e bilhetes que cobriam por completo as paredes.Com o passar dos anos as agendas se multiplicaram juntamente com as fotos e os bilhetes.A única coisa que acabei esquecendo foi da cor das paredes.
Começaram a me taxar de louco pelo meu método.Quase todos os meus amigos foram se afastando pouco a pouco de mim, larguei meu emprego e parei de sair.Me sentia ridículo andando para baixo e para cima com uma agenda, anotando cada passo.E em alguns casos, fotografando.Estava totalmente dependente daquilo.Tinha medo, horror de perder qualquer foto, qualquer anotação, por achar que perdendo algo, perderia minha memória,me perderia.Ao meu lado então, permaneceram apenas meu pai e minha mãe.
Enfim, um dia morreram.
Primeiro meu pai, coração.Anotei todos os detalhes da sua agonia no hospital e da sua morte, e fotografei e colei pelas paredes algumas fotos do cadáver e do caixão.Depois de algum tempo foi minha mãe, derrame.Os mesmos detalhes anotados e devidamente fotografados.
Então me senti solitário.Inicialmente ainda encontrava alguma companhia naquelas lembranças espalhadas por todos os cantos de casa, mas depois, elas começaram a me incomodar e a fazerem
que eu me sentisse dia após dia sozinho, como se elas participassem de uma confraria e me deixassem de lado.Passava por elas e elas diziam coisas a meu respeito, coisas que eu não queria ouvir, coisas que doíam, mesmo que belas.Comecei a ouvir então os risos de todas aquelas pessoas que me abandonaram, ou por estarem mortas ou por que fingiam estar mortas para mim.Risos, ora de felicidade ora de irônia.Risos que me humilhavam, que me rasgavam, me machucavam.E eu sei que alguns ali riam dessa minha situação constrangedora.
Eu já não dormia devido ao barulho que elas faziam ao se debaterem contra as paredes da minha casa.
Os dias foram passando e cada vez mais uma idéia amadurecia dentro de mim.
Eu só queria que elas ficassem mudas, que não me falassem mais nada, que não rissem mais de mim.
Decidi que iria as calar antes que eu enlouquecesse.
Rasguei todas as fotos e todos os bilhetes e destruí todas as agendas.Coloquei fogo em todos aqueles pedaços do meu passado, pedaços que um dia foram meus.Juro que até podia ouvir os gritos desesperados deles ao fogo, pedindo mais uma chance, gritando por misericórdia.Mas eu não tive.
Agora esse silêncio, essa paz, essa solidão tão leve, tão calma...
E fui me esquecendo dos meus amigos, dos livros, dos filmes, das músicas, dos meus antigos colegas, das minhas namoradas, dos meus cachorros, dos lugares, dos sabores, dos meus vizinhos, da minha familia.E fui esquecendo de mim, de quem eu era e de tudo o que eu já havia vivido.E me senti feliz, completamente feliz por não saber mais quem eu era.
Esqueci de tudo.
Menos de uma coisa.
A parede.
Ela era azul.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Porto.

Valeu a pena?
Não, não vou responder com os versos de Pessoa.
Minha alma é pequena.
Se um dia fora grandiosa, aos poucos a vida tratou de encurtá-la, de humilha-la, de fazê-la pequena, amiúde.
E assim cresci.
A menina que morava perto do mar, perto de um porto e que observava os navios sumirem no horizonte assim como um dia ela faria quando crescesse.Sumir no horizonte daquela vida miserável e mesquinha e aportar onde ela poderia deixar os resquícios dessa infelicidade calada, mas perceptível nos gestos.
E cresci.
A menina pegou um navio, sem dar adeus.Não tinha ninguém para dar adeus, tinha ali uma família, mas acreditava que eles assim como ela não se importariam com a sua ida.Queria ter alguém para quem voltar e abraçar, que chorasse toda vez que ela fosse embora e que chorasse mais quando voltasse.E assim foi sonhando durante a viagem, durante a vida, toda a vida sonhando com isso.
Trabalhou nos primeiros meses, tão jovem ainda, em casa de família.Pai,mãe e 2 filhos homens, mais velhos do que ela.Pouco tempo ali virou forçadamente uma mulher pelas mãos grosseiras do pai e pelas delicadas dos filhos.Aos poucos acabou se acostumando, abafando dentro de si os gritos de dor e de horror ao simples toque deles.Aprendeu também a não chorar, a não se lamentar.Apenas aceitava.Queria ir embora mas a necessidade, o simples pensamento de passar fome a fazia voltar e a novamente abrir sua porta.Deixa-la entreaberta.
Queria que essa não fosse minha vida.
Conto-a como se fosse de alguém muito próximo a mim, como se eu lamentasse por ela, a abrassasse e dissesse que eu estava ali para ajudá-la.
Assim, como eu queria que existisse alguém assim para mim.
A mãe sempre soube.Talvez sentisse prazer em me ver ali humilhada, limpando o chão em que eles pisavam, em ver limpando-me depois que eles pisavam em mim.Ela nunca se importou com o fato de que a empregadinha fosse a amante do pai e dos filhos.Acho que se sentia aliviada por não ter que ser ela a mulher que o marido abrisse violentamente as pernas para saciar as vontades.
Um dia, ela realmente se importou com toda essa história.
Percebeu que minha barriga estava saliente.Perguntou-me a quanto tempo minhas regras não vinham e eu não sabia dizer.Eu realmente não sabia que estava grávida.Fiquei feliz por saber que teria alguém para amar e para me amar, alguém que me faria esquecer de todo o meu sofrimento.O que choraria nas minhas idas e nas minhas voltas.
Arrancaram me esse sonho.
Levaram-me para um médico, "Ele vai cuidar de você Maria. fica quietinha tá?" "Ele vai cuidar do meu bebê?" "Vai sim Maria,vai sim"
Me deu uma injeção e desmaiei.Ao acordar não sentia mais nada dentro de mim, meu filho não estava no meu ventre.Estava ali, num pano enxarcado de sangue.Tão pequeno, tão indefeso.Calado, quieto demais para alguém que acabara de nascer.Tentei pega-lo, abraça-lo, mas o médico me dissera que estava morto.Que ele a pedido da familia, fizera aquilo. "Foi pro bem de todos Maria,foi pro bem de todos viu?"
Me sentia fraca demais para fugir, me sentia enojada ao me ver suja com aquele sangue que eu nem mais sabia se era meu ou do meu filho, me sentia morta.Não chorei.Apenas dormi com a esperança de acordar e estar novamente olhando o porto, os navios.Sonhando.
Acordei e me vi ainda ali.Tudo limpo, meu filho deve ter ido para a lata de algum lixo.Estava melhor.Fugi
Corri para longe daquele inferno, sozinha e cansada.
Pelo caminho, tentei me imaginar atriz.
Eu era uma atriz vivendo aquela personagem.Assim que as luzes se apagarem e o público de retirar, eu voltaria a ser a atriz.Eu teria para quem voltar cansada do espetáculo.Teria alguém para me dizer o quão maravilhosa fui.
Mas estava correndo, fugindo e com fome, e eu não era uma atriz.
E assim fui vivendo fugindo. E quando não consegui mais fugir, virei mulher da vida.Experiência já tinha, o que viria de pior?
As primeiras noites foram as piores até me acostumar com aqueles homens.Descobri que todos eram iguais.O segredo era se entregar achando que ele me amasse,assim eu não me sentiria igual a eles, fazer por fazer.Eu fazia por amor.Amor por alguem que eu sempre sonhara e que tentava acreditar que poderia ser aquele que estaria por cima de mim.Fechava meus olhos e ignorava os palavrões e todo os grunhidos asquerosos vindos deles.Aos poucos fui gostando.Não que me desse prazer ou qualquer coisa assim.Gostava de ser desejada.Gostava de ouvi-los falando de suas familias, ou do sonho de ter uma.
Eu também queria ter uma, mas me era negado esse direito.
Fiquei lá por anos.Sofria humilhações e dores e toda sorte da desgraça, mas para onde eu iria?
Ali eu pelo menos fui feliz, tinha amigos e era tratada com algum respeito.Essa felicidade que sentimos ao nos iludirmos.
Fui envelhecendo e poucos ainda me queriam.Virei chacota entre as mais jovens.Então resolvi partir.
Não houve adeus.Ninguém ali se importava com isso, com o meu adeus.Eu não chorei.
Vaguei.
Voltei para onde nunca mais deveria ter voltado.
Estou aqui,observando os navios chegarem e partirem deste porto.
Um dia eu fui um navio.
Mas sem um porto.