quarta-feira, 2 de julho de 2008

Porto.

Valeu a pena?
Não, não vou responder com os versos de Pessoa.
Minha alma é pequena.
Se um dia fora grandiosa, aos poucos a vida tratou de encurtá-la, de humilha-la, de fazê-la pequena, amiúde.
E assim cresci.
A menina que morava perto do mar, perto de um porto e que observava os navios sumirem no horizonte assim como um dia ela faria quando crescesse.Sumir no horizonte daquela vida miserável e mesquinha e aportar onde ela poderia deixar os resquícios dessa infelicidade calada, mas perceptível nos gestos.
E cresci.
A menina pegou um navio, sem dar adeus.Não tinha ninguém para dar adeus, tinha ali uma família, mas acreditava que eles assim como ela não se importariam com a sua ida.Queria ter alguém para quem voltar e abraçar, que chorasse toda vez que ela fosse embora e que chorasse mais quando voltasse.E assim foi sonhando durante a viagem, durante a vida, toda a vida sonhando com isso.
Trabalhou nos primeiros meses, tão jovem ainda, em casa de família.Pai,mãe e 2 filhos homens, mais velhos do que ela.Pouco tempo ali virou forçadamente uma mulher pelas mãos grosseiras do pai e pelas delicadas dos filhos.Aos poucos acabou se acostumando, abafando dentro de si os gritos de dor e de horror ao simples toque deles.Aprendeu também a não chorar, a não se lamentar.Apenas aceitava.Queria ir embora mas a necessidade, o simples pensamento de passar fome a fazia voltar e a novamente abrir sua porta.Deixa-la entreaberta.
Queria que essa não fosse minha vida.
Conto-a como se fosse de alguém muito próximo a mim, como se eu lamentasse por ela, a abrassasse e dissesse que eu estava ali para ajudá-la.
Assim, como eu queria que existisse alguém assim para mim.
A mãe sempre soube.Talvez sentisse prazer em me ver ali humilhada, limpando o chão em que eles pisavam, em ver limpando-me depois que eles pisavam em mim.Ela nunca se importou com o fato de que a empregadinha fosse a amante do pai e dos filhos.Acho que se sentia aliviada por não ter que ser ela a mulher que o marido abrisse violentamente as pernas para saciar as vontades.
Um dia, ela realmente se importou com toda essa história.
Percebeu que minha barriga estava saliente.Perguntou-me a quanto tempo minhas regras não vinham e eu não sabia dizer.Eu realmente não sabia que estava grávida.Fiquei feliz por saber que teria alguém para amar e para me amar, alguém que me faria esquecer de todo o meu sofrimento.O que choraria nas minhas idas e nas minhas voltas.
Arrancaram me esse sonho.
Levaram-me para um médico, "Ele vai cuidar de você Maria. fica quietinha tá?" "Ele vai cuidar do meu bebê?" "Vai sim Maria,vai sim"
Me deu uma injeção e desmaiei.Ao acordar não sentia mais nada dentro de mim, meu filho não estava no meu ventre.Estava ali, num pano enxarcado de sangue.Tão pequeno, tão indefeso.Calado, quieto demais para alguém que acabara de nascer.Tentei pega-lo, abraça-lo, mas o médico me dissera que estava morto.Que ele a pedido da familia, fizera aquilo. "Foi pro bem de todos Maria,foi pro bem de todos viu?"
Me sentia fraca demais para fugir, me sentia enojada ao me ver suja com aquele sangue que eu nem mais sabia se era meu ou do meu filho, me sentia morta.Não chorei.Apenas dormi com a esperança de acordar e estar novamente olhando o porto, os navios.Sonhando.
Acordei e me vi ainda ali.Tudo limpo, meu filho deve ter ido para a lata de algum lixo.Estava melhor.Fugi
Corri para longe daquele inferno, sozinha e cansada.
Pelo caminho, tentei me imaginar atriz.
Eu era uma atriz vivendo aquela personagem.Assim que as luzes se apagarem e o público de retirar, eu voltaria a ser a atriz.Eu teria para quem voltar cansada do espetáculo.Teria alguém para me dizer o quão maravilhosa fui.
Mas estava correndo, fugindo e com fome, e eu não era uma atriz.
E assim fui vivendo fugindo. E quando não consegui mais fugir, virei mulher da vida.Experiência já tinha, o que viria de pior?
As primeiras noites foram as piores até me acostumar com aqueles homens.Descobri que todos eram iguais.O segredo era se entregar achando que ele me amasse,assim eu não me sentiria igual a eles, fazer por fazer.Eu fazia por amor.Amor por alguem que eu sempre sonhara e que tentava acreditar que poderia ser aquele que estaria por cima de mim.Fechava meus olhos e ignorava os palavrões e todo os grunhidos asquerosos vindos deles.Aos poucos fui gostando.Não que me desse prazer ou qualquer coisa assim.Gostava de ser desejada.Gostava de ouvi-los falando de suas familias, ou do sonho de ter uma.
Eu também queria ter uma, mas me era negado esse direito.
Fiquei lá por anos.Sofria humilhações e dores e toda sorte da desgraça, mas para onde eu iria?
Ali eu pelo menos fui feliz, tinha amigos e era tratada com algum respeito.Essa felicidade que sentimos ao nos iludirmos.
Fui envelhecendo e poucos ainda me queriam.Virei chacota entre as mais jovens.Então resolvi partir.
Não houve adeus.Ninguém ali se importava com isso, com o meu adeus.Eu não chorei.
Vaguei.
Voltei para onde nunca mais deveria ter voltado.
Estou aqui,observando os navios chegarem e partirem deste porto.
Um dia eu fui um navio.
Mas sem um porto.

Um comentário:

Thiago Hernandez disse...

H'm. Gostei mesmo da parte que desfaz do Pessoa.

Mulher da vida, um cais de cera. Só dura uma hora. Ou que estiver disposto a pagar. (como tudo por aqui)