segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Kevin Carter


Acordou assustado, talvez um pesadelo, mas era a certeza de uma lembrança. O corpo doía, os pulmões numa união com seu cerébro pediam por mais um carreira. Era a única maneira de não ser Carter, por algumas horas, ser qualquer Kevin, qualquer fotográfo, de casamento porque não? Mas não era um sonho, mero flash de memória. Fora seu flash, sua maldita câmera que o jogara definitivamente no inferno, com um único click. Queria chorar, as lágrimas há muito tempo o haviam abandonado. Se recolheu em posição fetal, os olhos fechados, a respiração falha. Jogou um pouco de cocaína sobre seus ombros e cabeça, na tentativa que fosse o pó de sininho e que voltasse a ser criança. Mas sininho daria um chute no saco dele se estivesse por lá, certamente. Qualquer criança, mas não ela. Ela que aquele maldito Pulitzer em sua parede jamais o deixaria esquecer. Grande ética profissional, além da brilhante objetividade. Só queria que enfiassem aquela medalha no cú, se isso lhe devolvesse sua paz.


Como esquecer a incumbência de fotografar a guerra civil no Sudão? Era um fardo ser um africano de pele branca e se sentir estrangeiro em seu próprio continente, um decendente daqueles que trouxeram ódio pelos mares em troca de ouro e escravidão. O fardo do homem branco, não era os tornar civilizados. O maior fardo era os ensinar a serem monstros, essa era verdade que nenhum livro de história havia descrito antes. A verdade que só a história, por si própria, nos conta. Os jornais não contabilizaram as famílias devastadas pelo apartheid, mas contabilizaram os lucros obtidos pela Alemanha unificada. Não descreveram o martírio dos presos políticos, tratados como assassinos repugnantes, mas que só lutaram sem armas, só com suas vozes e seus sonhos, por uma África mais justa. Tinha consigo a certeza de que assassinos eles foram, mas da mentira mostrada ao mundo de uma união fajuta, união que separava um país em dois, sem a necessidade de um muro de concreto, para isso. Um muro de Berlim de preconceito na cabeça de todo mundo. Mas ela, não, ela não tinha culpa. Era só uma criança lutando pela vida, implorando para o seu Deus que a salvasse, que chegasse a tempo no campo de alimentação da ONU, antes que aquele urubu a predasse. Irônicamente, o urubu em questão tinha uma câmera em mãos, um cantil de água e força suficiente para ergue-la e salvá-la. O verdadeiro urubu, injustiçado, era irracional demais para descriminar seu alimento, assim como ela, lutava pela sua vida nas terras áridas e esquecidas do Sudão. Mas ele, senhor Urubu Kevin Carter, respeitadíssimo, lutava pelo melhor enquadramento, o que lhe traria ou louros da vitória. O tempero da sua amarga derrota.


Mas era necessário, pressentia isso, não intervir na vida. Uma amostra grátis da realidade que muitos evitam ler em páginas de jornais, dos poucos, que tinham estômago para isso. Por isso não a resgatou, fugiu com o filme no bolso, fugiu do Sudão. Fugiu de si mesmo, por tudo o que lutara até então com seus amigos e sua câmera.

Olá New York Times, veja essa África que ajudaram a construir! Palmas para o Jovem fotográfo, para sua luta por mais igualdade em seu continente, pela libertação de seu líder Mandela, palmas para sua frieza, para sua estúpida vida de merda, palmas por favor. Por seu prêmio Pulitzer, que estampa seu peito como os tiros que seu amigo estampou em seu peito ao ser os olhos do mundo, em um dos conflitos da Etiópia, porque ele, caros críticos e jornalistas, interviu sobre a vida e resgatou os feridos daquela chacina. Seu prêmio, 8 tiros a queima roupas.


E agora, além do prêmio, só lhe restam críticas da população. Porque esses grandes filhos da puta brancos não compram uma passagem aérea até a áfrica? Facílimo criticar algo sentados em suas poltronas de couro, seus digníssimos cús execrando toda a boa comida que devoram. Se ele foi um covarde, está pagando seu preço agora. No mais profundo poço, com garrafas e mais garrafas da mais pura vodka espalhadas pelo chão, com seu nariz em carne vivíssima, muito mais do que ele, com seus pulmões protestando contra cada respiro. Ela aparece no seus sonhos, ás vezes. Pede ajuda, e ele consegue ver o seu sorriso em meio a tanta fome e feridas. Ele responde que promete, vai matar o verme que lhe abandonou, para que nunca mais o faça. Para que outros vermes, aprendam a lição, e não abandonem jamais seus ideias.


Fotojornalista sul-africano suicidou-se após anos registrando a miséria humana [27/06/94]


Conto baseado na história real do fotográfo Kevin Carter, sobre mais leiam http://www.revistawave.com/blog/index.php/2008/02/20/kevin-carter-1960-1994/

Ou ouçam

http://www.youtube.com/watch?v=T7hw5NkSPvs
(Manic Street Preachers - Kevin Carter)




22 comentários:

HugoCrema disse...

Primeiro de uma horda de comentários: Introspecção bastante pungente, gostei por ter falado do ponto de vista do persongem, primeira pessoa. E não julgando-o. Valeu a pesquisa, mas o que me chama a atenção aqui é aquilo que não se precisa pesquisar. Sentimentos em carne vivíssima, ardendo em algum lugar da consciência, não na da personagem, mas na nossa.

Julia disse...

Estudei sobre o Kevin na faculdade. É uma verdadeira história de como uma pessoa pode deixar que seus ideais possam ser vendidos por reconhecimento. Mas eu acredito na boa vontade do Kevin, ele recebu instruções para não intervir em nada, caso contrário poderia ser mandado para fora do Sudão. No fundo ele achava que ela seria o simbolo maior de todas aquelas crianças que pediam por ajuda.
O seu conto é neutro, não julga o Kevin, julgou o mundo ao redor dele, e isso é que dá todo o mérito ao que escreveu. E nos faz pensar, no quanto vale nossos ideais. Será que lutamos pelo reconhecimento ou lutamos por algo que seja maior que isso, como uma África unida?

Rafael disse...

Ele fez a escolha errada. Poderia não ser lembrado por aquela foto e sim por toda a luta do seu grupo.

Sem mais, escreveu isso de uma maneira universal, para que todos os críticos falem sobre o que vivenciaram e não o que os notíciarios lhes oferecem.

Daniel disse...

Oi Katrina,

Eu já tinha lido sobre essa foto e o suicídio do fotógrafo. Mas não sabia de todas essas informações.

Valeu.
Beijos

Marcelo Mayer disse...

esse fotógrafo é um personagem, que como todos os seus textos, tem um pouco de vc. embora seja baseada em outra história. é vc ai!
e conseguiu misturar um conto numa crítica social!
quem disse que vc não sabe fazer crítica? que eu saiba só vc fala isso e está enganada.

bjs

Camila disse...

muito boom esse texto :)
fico triste por ver noticias de pobreza, etc etc

Suzy Carvalho disse...

:O

Anônimo disse...

Menina, que belo conto, faz a gente pensar, imparcial, vc escreve bem sabia?

meus instantes e momentos disse...

passando para te desejar uma ótima e feliz semana.
já conhecia o fato, não as informações. Ótimo post.
Maurizio

CL disse...

É um absurdo pensar que ele se contentou em fazer seu trabalho e simplesmente saiu andando depois. Fez o que esperavam dele... Mais um ser humano de merda que só faz o que a humanidade espera. E o que aquela criança esperava? Não conta? Ela não é um componente da humanidade também?
Nós somos absolutamente patéticos, agindo da forma como o mundo nos ensinou a agir. Cumprimos o que chamamos de dever e pronto, estamos livres de todas as outras obrigações. Os homens da ONU que cuidem dessas crianças, é o que nós pensamos. Patéticos, é o que somos.

Anônimo disse...

se Gandhi me permite vou deixar pra falar de fome qual ela eu sentir.. porque eu ainda como sal, às vezes.

não posso falar em nome da dor que não sinto, mas posso falar do que faço para que não a sintam também..

Natacia Araújo disse...

Já conhecia o trabalho de Kevin e a história também. Concordo com um dos comentários de que ele recebeu instruções para não intervir em nada para não ser banido do Sudão. Mas o fato em questão vai além das ordens e do próprio ideal que ele tinha como fotógrafo, envolvia o comportamento e a ética que nos faz humanos. Infelizmente nada justifica a postura dele, independente de todo o trabalho que possa ter sido realizado com objetivo de abrir ao mundo a realidade ali presente, nada justifica mesmo.

Katrina, posso falar sem a menor dúvida que esse texto foi íncrivel! Uma crítica provocativa que a gente devora em minutos!
Fico super feliz de ver um assunto nem tão conhecido pra alguns como este ser destrinchado de uma forma tão visceral como você fez aqui.
Vida longa! rs

Luna disse...

nunca o critiquei.

como vou criticar o fotógrafo que não conseguiu sobreviver de sua própria culpa?


“O que me preocupa não é o grito dos Maus, mas o silêncio Bons”

ele teria ajudado esta, mas e as outras milhões de cenas como esta?

A atitude dele isolada não iria mudar muita coisa. A foto talvez tenha mudado mais, e com certeza fez agir o da bunda na cadeira.
Ele fez o certo: A FOTO. ele não ajudou porque o ser humano é limitado e não aguenta isso, mas se tem uma coisa o ser humano sabe fazer bem, é criticar.

Muito bom o post Katrina.

beijos imensos.

Gian Fabra disse...

belo post, me fez pensar...

o mais dífcil não é encontrar a verdade, e sim lidar com ela.

jóia!
bjs

.maria. disse...

ótimo post, talvez o melhor, mas prefiro não rasgar o verbo pq vc tem esse costume dos bárbaros de surpreender. julgamento é covardia judaico-cristã, deixemos aos todo poderosos senhores da inquisição... sobreviver a nossa limitação, mamíferos metidos a deuses, é foda pra caraleeo.

Daniel Faria disse...

katrina,

belo texto, e agradeço pelos créditos; sua crônica é ainda mais ardente e rasgante que a minha reportagem. mas a imagem ainda é imbátível: talvez a mais impactante do século passado, concorda?

beijos!

Daniel Faria disse...

*imbatível

Larissa disse...

Recebi essa foto num e-mail essa semana. Lógico que já a tinha visto, mas a história do Kevin é muito triste. Não sei exatamente o porquê disso, mas ele não podia fazer nada. Gostei da mistura de sentimentos massacrantes, deve ser parecido com como ele se sentiu antes de se martar. Vendido. Inútil. :( Não sei o que faria diante de uma cena como essa.

O Neto do Herculano disse...

A imagem é extremamente emblemática, dolorosa até.

Wilson Torres Nanini disse...

Para com qualquer outra pessoa é preciso empatia. Kevin ficou aterrado pelo horror. Belo texto para uma das melhores imagens de algo que preferiríamos jamais termor que (vi)ver. Parabéns pela escolha de mais um tema que eclode reflexões imprescindíveis! Seu blog tem nutrido muito meus próximos passos.

Lucas Lima disse...

não conhecia, obrigado pela oportunidade de me fazer refletir algo dessa amplitude,
pra se pensar..., e agir que no mundo do pensamento num se mata a fome, rs
bons dias

Roberto B. disse...

ei, obrigado pela visita ao nosso blog, em breve entro em "carreira solo", apareça!

beijos!

r.