quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Down downtown

Para I.C


Os pedestres os olham abismados ao passarem rentes aos seus passos, dois embriagados abraçados na frente da estação de metrô olhando absortos para o céu que lentamente ganhava as cores do dia. Sentaram-se na calçada esperando que a estação abrisse e que cada um seguisse o seu destino, em silêncio, com medo de que algo muito frágil entre eles fosse quebrado com a primeira palavra pronunciada.

Ela foi a primeira a se manifestar ao dar um sorriso meio desgovernado e alinhar sua cabeça no ombro dele, tentando sussurrar algo que era impossibilitado pelas risadas provocadas pelas cócegas que ele sentiu naquele instante. Era difícil não sentirem um estranhamento ao se tocarem com aquela intimidade depois das garrafas deixadas para trás transbordando de mágoa. Suas peles eram feitas de vidro e qualquer toque estava sujeito a fraturas e estilhaços que machucariam qualquer um que estivesse próximo, mas também estavam sem pele e qualquer toque ocasionaria dores lancinantes até se desintegrarem, talvez se tornando início: cinzas.

- Você é capaz de lembrar de alguma coisa que eu disse no começo? Algo que prove que eu posso ter sido uma companhia bacana mesmo se eu não tivesse bebido nada?

- Vejamos, você disse que o que mais odeia em toda a filosofia marxista é essa coisa de chamar todo mundo de companheiro. Que chamar de companheiro consegue ser pior do que chamar de brother e que chamar qualquer pessoa de ambos, prá você, consegue ser pior do que xingar de filho da puta. Lembra disso? Eu não parava de rir com esse seu comentário.

- Vagamente, foi bem antes da vodka isso? Eu parecia chata, não parecia?

- Foi antes, você nem estava falando enrolado ainda. Foi erro meu ter lhe oferecido vodka enquanto você se mantinha forte na cerveja. Mas não parecia chata, ou pelo menos não ficou assim do meu lado.

A estação de metrô abre, as pessoas próximas se encaminham rapidamente para dentro das acomodações e ignoram o casal sentado próximo à escada como se fossem dois cães de rua, silenciosamente abandonados num canto qualquer por alguém. Ela procura dentro da bolsa o seu celular e deixa derrubar sua escova de cabelo e um absorvente. Ela não repara, mas ele não conseguia tirar os olhos daquele absorvente como se fosse uma evidência de que ela era tão humana quanto qualquer outra mulher, tão sujeita a sangramentos quanto as demais.

- Desculpa pelas perguntas, é que eu ando meio mal esses dias.

- Você contou, eu te entendo.

- Eu devo ter contato tudo quando eu estava bêbada né?

- Se eu te conhecesse a mais tempo eu diria que foi tudo. Como te conheço a pouco, acho que foi só o suficiente para uma noite.

- Eu pareço uma cadela insensível não? Eu lembro vagamente de ter te empurrado quando tentou me beijar.

- Você parecia que ia chorar, ficou calada e meio distante por um tempo depois de ter dito tudo aquilo. Eu só queria te abraçar e te dizer, sei lá, que estava tudo bem. Sabe, aquilo não ia mais acontecer, essas coisas.

- Mas eu lembro de ter te empurrado, não foi? Você caiu até. Eu nem tentei te levantar, devo ter rido. Aliás, eu ri não foi? As pessoas encontram algum motivo para rir no desespero.

- Caí da mesa, tive até que dizer para você ter calma, eu não ia mais tocar em você, que aquilo que aconteceu com você não ia acontecer hoje, lembra? Quando eu me levantei e vi você rindo fiquei mais tranquilo. Eu esperava ter que sair atrás de você pelas ruas, com medo de sei lá, que você tentasse fazer alguma besteira contra você mesma naquele estado.

- Mas eu corri, não lembro bem qual foi o motivo, mas eu corri de você. Lembra?

- Eu segurei a sua mão depois de ter contato um pouco sobre mim. Deve ter sido muito para você e então, bom, você se levantou e saiu andando do bar. Eu paguei a conta e fui atrás de você. Parecia desnorteada e quando percebeu que eu te seguia começou a correr.

- Eu te xinguei tanto e você só tinha feito o favor de me ouvir a noite toda. Viu como eu fui uma vaca estúpida com você? Insensível prá cacete?

- Não, olha só: não é porquê você não me deixava te tocar e te ajudar que você é isso. Não nos conhecemos a tanto tempo assim, as nossas peles ainda estão estranhas. Elas doem e podem se quebrar a qualquer momento. Você me contou algumas coisas da sua vida, eu contei outras da minha, mas ainda assim eram superficialidades, camadas sobrepostas a essas nossas peles. Seremos esquecíveis em breve, você vai ver. Não se preocupe no que eu acho de você agora, seria uma opinião baseada em uma camada, entendeu?

- Entendi, mas o que você acha de mim agora?

- Quer mesmo saber?

- Claro! Diz aí, o que você acha de mim?

- Acho que você está cansada demais por hoje e que deveria entrar logo nessa estação e voltar para casa.

- Não vai mesmo dizer né?

- Eu acho que eu também estou cansado demais por hoje e que meu ônibus é aquele que está se aproximando daquele ponto perto dos correios, e que se eu não o pegar agora, só daqui a uma hora.

- Você parece um fugitivo.

- Você também. Assim como eu, você também está fugindo da sua pele.

Levantaram-se com a ajuda um do outro e seria a primeira vez que se tocariam sem medo da dor que isso lhes causariam. Ela garantiu que tinha o número dele gravado em sua agenda e que ligaria ainda naquele dia por respostas. Ele a abraçou rapidamente e correu para o ponto antes que o ônibus, que já havia parado na rua acima, dobrasse a esquina e o esquecesse ali a mercê do frio e do sono.

Mandou-lhe beijos à distância que se perderam pelo caminho.


Conto baseado em Downtown


3 comentários:

Vanessa disse...

Incrível, me emocionei. Tem continuação? Espero que sim :)
Beijos

Wacinom disse...

Que nesse novo ano você continue a transpor as barreiras do sólido, palpável e principalmente etério.
Inté..

Henrique Miné disse...

bem, se eu tivesse escrito, seria praticamente autobiográfico, com a diferença de que eu, quando bebo, saio chamando todo mundo de companheiro, incitando-os para a revolução ou, pelo menor, para mais um copo.

beeeeeijos!