quinta-feira, 1 de outubro de 2009

De hoje e amanhã num ônibus.

Mariana resolveu que faria francês, ideia que há muito tempo fermentava em seus pequenos desejos mas que ainda não crescera. Mas o aroma permanecia ali, sempre a lhe lembrar do que prometera a si mesma num dia em que ouvira Anna Karina, meio sarcástica, bem apaixonada, dizer "Jamais je ne t'ai dit que je t'aimerai toujour", desfilando com aquele robe azul. A legenda dizia " Eu nunca disse que sempre vou te amar", mas para Mariana, soou como se Anna tivesse dito "Eu vou te amar para sempre", e com aquele sorriso e aqueles olhos encarando o pobre Jean Paul numa breve dança sustentada por suspiros, não era para se entender isso?

Convencera aos pais da sua idéia, usando de todos os argumentos possíveis, desde lágrimas de crocodilo de bolsas falsificadas até promessas de se rebelar contra qualquer ordem, uma fuga ensaiada de casa, quem sabe. Desistiu da agressividade e do drama, apelou para a realidade então, já que, para eles, seria muito conveniente que a filha fizesse francês. Era algo a mais para falarem aos seus amigos do clube, imaginem, nossa filha de 12 anos, além de falar inglês e espanhol, agora também fala francês!

Descrentes da excentricidade da filha, fizeram a matrícula na melhor escola de francês da cidade, indicação de alguns amigos que já haviam feito o mesmo curso. Sentiam-se felizes, como se a pequena de repente houvesse se tornado uma pequena mulher de grandes decisões. Não conseguiam esconder o orgulho e uma certa nostalgia, do tempo em que era tão dependente e tão pequena que cabia em seus braços. A menina, ao perceber a mudança dos pais de comportamento, agora tão corujas e doces como jamais foram, ria molemente sobre a cama. Se estavam assim, antes que ela aprendesse a falar qualquer coisa em francês, imaginem como ficariam depois das primeiras aulas? Bobinhos.

No primeiro dia de aula, decidira relutante que iria sozinha ao colégio. Os pais, preocupados, tentaram convencê-la a ceder ao menos isso, uma carona não faria mal a ninguém, se fosse vergonha, eles a deixariam na esquina mais próxima. A garota apenas dizia que da mesma maneira que escolhera falar francês, também queria a mesma liberdade de escolher como queria ir ao colégio. Não era vergonha, explicava, mas não era mais uma menininha, queria saber caminhar sozinha usando suas próprias pernas. Queria apenas que lhe explicasse qual ônibus deveria pegar, em qual ponto deveria descer. Se pudessem detalhar quantos passos dar, seria grata. Novamente, os pais, com o orgulho engasgado, descreveram todo o itinerário à filha, já que não havia mais o que fazer.

Mariana então pegou o ônibus no ponto próximo a sua casa. Subiu sôfrega os degraus, quase trêmula. Todos os medos juntos com as apostilas dentro de sua mochila rosa, o coração trôpego que ora batia no lugar do estômago, ora aparecia tão próximo dos rins. Procurou algum lugar onde se sentar, tinha um vago ao lado de um rapaz distraído com seus fones no ouvido e camisa de banda gringa que ela jamais ouvira falar antes, em uma outra ocasião até o acharia gatinho se não fosse o balanço do ônibus e o medo de prestar mais atenção no garoto do que no seu ponto. O outro lugar vago era ao lado de uma mulher, bonita até, um tanto familiar para se falar a verdade. Desconsiderando os hormônios pré adolescentes, sentou-se ao lado da mulher.

A medida que o ônibus avançava, o medo aumentava. E se passasse do ponto? E se o ônibus fosse assaltado, porque havia tantas notícias assim nos jornais de seu pai que achava que era muito provável que todos os ônibus fossem assaltados? E se, aquele cara negro de boné e roupas largas, perto do cobrador, estivesse mexendo em uma arma dentro do bolso? Tantos "e se" passaram por sua cabeça, que mal percebera que o que o jovem tinha em seu bolso era apenas um celular e que o olhar da jovem mulher ao seu lado, recaíra sobre sua face séria, traçado por várias linhas de desespero.
Preocupada com o seu ponto, que não saberia se poderia ser o próximo , perguntou então a mulher, se faltava muito para seu ponto chegar. Conteve a vergonha, esboçou um sorriso sereno, e arriscou:

-Moça, por favor, sabe se demora muito prá chegar até o ponto próximo à escola de idiomas?
- Daqui uns 15 minutos, eu vou descer um ponto depois, qualquer coisa te aviso.
-Ah tá, obrigada.
- De nada, aliás, espero que não me interprete mal, mas fiquei olhando para você e vi que parece tanto comigo, nessa mesma idade. Tem os mesmos traços que eu tinha quando ficava com medo
- E quem disse que eu estava com medo?
- Desculpa, eu só disse que parecia comigo. Faz algum curso de idioma lá na escola?
- Vou começar a fazer francês hoje.
- Olha só, que legal. Eu também comecei a fazer francês com a sua idade, mais ou menos. Acho que fiquei até uns 16 anos fazendo o curso. Todo final de ano eu preparava minhas malas, esperando que os meus pais pagassem uma viagem até Paris. No final, eu mesma que tive que arcar com ela.
- Ah não, eu não quero ficar tanto tempo assim fazendo francês, pretendo fazer só para entender o que falam nos filmes franceses. Sabe, meu tio tem uma coleção de filmes, até agora só consegui assistir os franceses. Mas sempre assisto escondida dos meus pais, eles não gostam que eu assista filmes de adultos.

- Mas que bobagem a deles! Na sua idade, eu decidi fazer francês quase pelo mesmo motivo, acredita? Lembro que assisti na tv ao Pierrot le fou, não sei se já viu esse filme. Numa cena, uma atriz, a Anna Karina, vestida num robe azul chega perto do mocinho e diz: Jamais je ne t'ai dit que je t'aimerai toujour, assim mesmo, fazendo o mesmo biquinho. Achei tão lindo na hora, sabe, a maneira como ela movimentou os lábios, como sorriu para ele, como ele suspirou bem baixinho que quase se dá para ouvir, mas dava prá perceber que ele estava completamente apaixonado por ela. Não consegui acreditar que ela tava dizendo que não o amaria para sempre, poxa, os olhos dela diziam outra coisa, tanta coisa, pareciam que diziam que ela o amaria para sempre. Achei que a legenda estava errada. Queria ver o filme sem legendas, por isso, fiz francês.

Mariana sentiu que suas pernas ficaram um pouco sem força e não conseguia respirar direito. Coincidência demais? Preferia acreditar que nada, mas nada mesmo, passava de mera coincidência. Um monte de gente deve ter feito aulas de francês por causa de algum filme do Godard, óbvio. Ainda mais se fosse o Pierrot le fou, em questão. Queria saber mais sobre a estranha, que não era assim tão estranha afinal.
-Posso te perguntar a idade ou você se sentiria ofendida?
-Claro que pode, ainda não me sinto mal em dizer que tenho 31 anos. E você? Parece ter 12 anos, estou certa?
- Sim, mas logo faço 13 anos. Você trabalha do quê? Fez faculdade? Morou em Paris mesmo?
- Calma, uma pergunta por vez minha querida. Nunca me fizeram essas perguntas dentro do ônibus, fico um pouco acuada assim, tudo bem? Vejamos, eu só fui para Paris uma vez, antes de me casar, mas fiquei pouquíssimo tempo. Aí terminei a faculdade de letras, comecei trabalhando como tradutora de livros franceses, os mais recentes. Aí me casei, não deu certo, fiquei com depressão, larguei o trabalho. Me afundei em dívidas, vendi meu carro e agora estou indo trabalhar como assistente em revisão, numa editora. De ônibus. Aliás, teu ponto tá quase perto.
- Nossa, e porque não deu certo seu casamento?
- De certa maneira ele foi o único cara da minha vida. Fazíamos francês juntos, quando me apaixonei por ele. Durante 4 anos fomos bons amigos, depois grandes amigos, aí namoramos, brigamos várias vezes. Aí eu fui para Paris com 17 anos, mais para esquecê-lo do que para aproveitar a cidade e viver meus sonhos, e quando voltei aos 18, não teve jeito, acabei voltando para ele, e no final nos casamos. Bom, no final mesmo, nos separamos. Foi trágico, trabalhávamos juntos, os mesmos amigos, os mesmos comprimissos. Sempre os mesmos filmes, os mesmos livros, as mesmas músicas. Com o tempo já sabíamos o que um ia fazer antes mesmo que este soubesse o que faria. Surgiram brigas, ele me traiu, eu o traí. Aí surgiu o divórcio, tão doloroso! Quase me matei, de tanto desespero. Aí contratei analista, advogado. Aé mãe de santo prá me livrar de tanto mal olhado, se fosse o caso. Olha, teu ponto é o próximo pequena.
- Afinal, porque tá sendo assim, tão sincera com uma menina de 12 anos?
- Querida, quem já assistiu Godard, já assistiu o que é a vida de verdade, sabe, pelo menos, o que começa a ser a vida de verdade depois que a gente descobre que estamos vivos. É daquela maneira mesmo, um pouco romantizada mesmo, ás vezes sem o esperado final feliz. Esperamos que em 2 ou 3 horas tudo aconteça de uma vez, e não é bem assim. Ela nem acontece, a vida. Mas não fica assustada assim não, é a gente que escreve ela, não nenhum francês pirado, fica tranqüila. Claro que se a gente sabe antes como a história pode terminar, ainda dá tempo de reescrever as primeiras cenas.
-Obrigada pelo conselho, senhora. Qual seu nome?
- Mariana, e o seu querida?
- Flávia.
-Teu ponto. Boa sorte na primeira aula, Encore plus!
-Ah?
-Assista Felinni, e Bertolucci. Não deixe os americanos de lado, nem os alemães.
- Obrigada!
-Até mais!

Mariana desceu no ponto. Resolveu ligar a cobrar para os pais, para que a buscassem. Não sabem, no meio do caminho, falaram sobre Berlim e de como a Alemanha vai ser o país mais importante de toda a Europa. Acho que alemão é uma língua mais importante do que o francês, não acham?

11 comentários:

Julia disse...

Depois de uma tempestade, sempre vem a calmaria. Ou depois de um conto tão forte como o último, veio um bem levinho.

Poxa, adorei muito mesmo a história, achei bem original. Eu também quero me reencontrar num ônibus.
Onibus não, num carro importado.

Prefiro os americanos do que os alemães.

Anônimo disse...

Seu blog é muito diferente de todos os outros que encontro por aqui, história muito original a sua, a gente se reencontra quando menos espera. Gostei de verdade.

jujuba disse...

arrepiei, de verdade! linda tua escrita!

Victória disse...

entãão, eu só assisti Grey's anatomy uma vez.. só que eu não gosto dessas coisas de médicos e afins...

Marcelo Mayer disse...

no ônibus é que temos tempo pra parar em nós mesmos.

só senti falta de conversas bestas dos passageiros. ou conversa de novelas.

ótimo!

Juliano disse...

Acho que não falta nada pra você virar um bela escritora.
Gostei muito daqui.

Beijooooos

Anônimo disse...

não sei se também em outro lugar
mas eu me afoguei aqui :*

Mafê Probst disse...

Vou te confessar que senti uma vontade tremenda de fazer francês e de assistir à esse tal filme. Honestamente? Nunca curti muito filmes franceses e nem cheguei a assistir um, por inteiro...

Mas gostei da honestidade da mulher, nova, divorciada. Acho que ela terminou como Ana Karina, falando de um não amor, com os olhos desmentindo toda a fala.

É,
sei como é.

Fabi Tavares. disse...

Um encontro consigo mesmo? Muito boa história, menina, você escreve de um jeito que... me prendeu. GosteiMUITO de tudo por aqui.

O sorriso será pintado calmamente e com cores bonitas, cê vai ver.

Se você encontrar uma caixa que comporte saudade, deixa uma cantinho pra mim lá?

.maria. disse...

muito bom! ótimo ritmo, a história mto original. adorei. elogios nada originais, mas mais sinceros que o "eu vou te amar pra sempre". bjos.

Francisco disse...

AE, caceta! chique 10.

vou te falar que estes textos longos me desanimam. confesso que só li os primeiros parágrafos por causa do resgate do meu livro. mas ali na parte do diálogo eu me interessei e terminando o texto eu senti que meus 7 ou 8 minutos lendo isso foram bem gastos.

curti, Katrina.