Lembrou-se.
Aquela face silenciosa, como haveria de esquecer algo tão sublime?
Um pensamento que jamais mudava e persistia numa mentira estúpida cotidiana. Sim, ele se fora, ela não.
Ela seria a mesma, a poeta que transformava cada traço de sua vida mal escrita em versos, um poema que nunca lhe pertenceria. Exorcisava todos os demônios com sua pureza e
seu velho sorriso quebrou-se, frente a tela de plasma com o sorriso dela eternizado em pixels. A voz suave a recitar aqueles poemas guardados em pastas, palavras que lhe resgatavam de uma realidade absurdamente solitária, faziam com que uma ideia crescente tomasse forma, carne embebida em sonhos.
Sabia que ela ainda morava no mesmo apartamento, da mesma rua onde se despediram pela última vez, olhos implorando por mais uma chance, os lábios fazendo o contrário, ela lhe dizendo sobre as feridas, ele mostrando as armas. Quanto tempo? Desnecessário medi-lo. O coração, sempre ele, possui seus próprios ponteiros.
Vestiu sua camisa favorita, pegou o casaco e saiu de casa sem fechar a porta.
O que roubariam? Quando lhe roubam a alma, qualquer coisa se torna amiúde.
Andando pelas ruas imundas, ele era imundo e não se importava mais com isso, a casa era limpa demais, mania contraditoria por limpeza, somente papéis brancos espalhados pelo chão e algumas cinzas de cigarro, as roupas perfeitamente limpas sobre uma alma tão suja.
Não ela, ela jamais.
Sem rumo, sem pensamentos.
Apenas os sentimentos, vespas na cabeça, tiros nas entranhas.
Entrou na primeira estação de metrô que viu, ficou feliz pela bilheteria estar sem fila, não queria esperar, não poderia.
O vagão estava vazio, sim, estava lotado, mas ainda assim, sua solidão o afogava num delírio vazio de vida.
Era estranha a sensação que ainda sentia de esperá-la como quem espera o inverno através de janelas entreabertas, mesmo que ela o aquecesse como o verão em tempestades de prazer e vida, (essa coisa que ele já desconhecia para que servia) refletidos naqueles olhos que faziam todas as cores da primavera florescerem, o matando como as folhas pelo caminho feito de outono.
Ele estava entre estações e não importa em qual delas ele parasse, em nenhuma ele a encontraria dispersada em algum sorriso ou perfume.
Sentia a ausência dela dentro do seu corpo, assim como sentia a ausência de si mesmo dentro de si.
Onde ela estaria agora?
Não sabia, sentia.
Desceu algumas estações depois, sem olhar para trás. Apenas seguiu os demais que corriam em direção à saída com tamanha pressa que se esqueciam dentro dos vagões.