Publicado Originalmente em 23/04/08
- Leve o Coltrane
- Como assim?
- Leve-o, já disse.
- Mas você sempre disse que amava Coltrane.
- Menti, nunca fui muito chegado em blues
- Jazz.
- O quê?
- Jazz, Coltrane é jazz, não blues.
- Ah, prá mim é a mesma coisa.
- É bem diferente.
- Ah?
- Jazz de blues, bem diferente. Você realmente mentiu. Não era de se esperar.
- AH, desculpe-me senhora eu-nunca-me-enganei-antes. Sinceramente, não me importo muito em ser taxado de mentiroso por você, pelo menos, não agora.
- Tudo bem, exagerei um pouco mesmo. Mas porque afinal, você mentiu naquele nosso encontro? O segundo.
- Sobre o quê?
- Sobre gostar de Jazz, essas coisas. Lembra que você me perguntou antes do nosso primeiro beijo, se eu gostava de jazz? Eu disse que amava, aí você tirou da sacola esse álbum do Coltrane, me convidando para ouvir junto de você.
- Queria ser diferente, te impressionar antes de te levar para a cama.
- É, e conseguiu. Ouvindo você falar assim, até me sinto mal comigo mesma. Idiota, seria a palavra mais exata. Mas de onde você tirou aquele álbum? Você falou de Coltrane com tanta veracidade que realmente acreditei que gostasse mesmo dele.
- É, eu andava meio ansioso com esse nosso encontro, digo, o segundo encontro, o tal encontro. Peguei e ouvi antes o album sozinho. Foi então que eu fui atingido por todas aquelas notas, sabe, parecia que alguma coisa dentro de mim havia mudado, dentro demais de mim. Você veio a minha cabeça junto com aquelas canções e você já não era mais a garota com quem eu passaria uma noite. Era a mulher com quem eu passaria a minha vida.
- Nossa...mas, porque mentiu?
- Menti o quê?
- Sobre jazz e blues, disse que não sabia a diferença
- Eu disse que não me importava, eu não preciso saber o que é jazz e blues para gostar de Coltrane.
- Mas então, porque quer se desfazer dele?
- Eu não posso ficar com ele, não posso.
- Mas...
- Não entendeu ainda? Amo tanto Coltrane quanto amo você.
- Ah...
- Cada vez que fazíamos amor, mais ouvia Coltrane, mais ele fazia sentido. Vocês acabaram se tornando algo único, saca? Estavam mesclados de uma maneira impossível de serem separados. Você era tão suave e delirante quanto alguns solos dele. Eu me perdia em seu corpo com medo de me encontrar, sabe, aquele mesmo medo que a gente sente de que Blue Train acabe antes dos seus olhos alcançarem algo azul no final de uma estrada desértica. Eu encontrava todas as notas ali, escondidas em teu corpo, um convite para que meus lábios pudessem tocá-las. Não sei explicar isso ao certo, mas certo mesmo, é que não posso ficar com Coltrane. Seriam músicas estranhas, só músicas. Mais um cara tocando saxofone.
- Eu não imaginava isso.
- Nem eu
- Tudo bem, eu fico com o Coltrane
- Ouça-o por mim.
- Ouvirei sim.
- Adeus
- Adeus
Ela coloca o Coltrane debaixo dos braços e ganha as ruas. Vira a esquina próxima e joga-o no lixo.
Não suportaria encará-lo como mais um cara tocando um saxofone.
Músicas, só músicas.