terça-feira, 30 de junho de 2009

Último diálogo

- Gostaria de ter uma pedra para afiar a faca - disse o velho depois de examinar os nós da ponta do remo. - Devia ter trazido uma pedra. "Sim, você devia ter trazido muitas coisas", pensou. "Mas não as trouxe, velho. Agora não é o momento de pensar naquilo que você não tem. Pense antes no que pode fazer com aquilo que tem."

(Hemingway - O velho e o mar)




Os sinos não dobraram por mim, caro Hemingway. Minha mão segura uma pistola e ela sorri para mim quase como a sua pistola sorriu para você e desejou arduamente o seu peito, estou quase beijando-a porque ela assim o quer, quer que eu a toque até que ela exploda num orgasmo violento dentro dos meus lábios, e não será aquele líquido meio gosmento que a gente tanto gosta de lamber em uma mulher, sinto lhe dizer. Ainda há muitas folhas a serem escritas e é certo, que eu as escreverei com sangue, com esse sangue que corre dos meus olhos quase como se fossem lágrimas e mancham o meu peito antes mesmo de tocar o chão, porque as minhas letras são carnes feridas e infeccionadas de muitos anos. Eu me olho no espelho e nada vejo a não ser este que vos fala, esse ser inerte de qualquer felicidade, como se ela fosse algo que apenas existisse nas páginas manchadas dos meus livros, já devorada pelas traças. O sol não se levantou ainda para mim e eu jamais me levantarei para ele.
É engraçado me ver esboçar um sorriso. Uma cavidade rasgada cheia de pedras amareladas e tortas, que chegam até a doer. Estou tentando sorrir agora, em frente ao espelho, tentando seduzir a pistola, minha única companhia feminina no momento. Espero que ela se sinta atraída pelo meu corpo franzino, seco e com suas ranhuras como se fosse uma folha morta, dessas que se encontra sempre pelas calçadas e pelas ruas durante o outono e o inverno, das quais todos pisam sem se importar muito. Porque se importar com algo morto?É Hemingway, acho que me resumo a uma folha morta, ou uma folha em branco e amarelada, nunca usada antes. Ou um rascunho, de algum livro medíocre do qual o próprio escritor tenha desistido perante o total fracasso. Talvez isso seja triste, não mais para mim nem mais para ninguém, mas é apenas uma comparação que uso apesar de cretina, muito cretina você diria, ou nem diria apesar de toda a sua genialidade, daria-me razão, afinal, chegamos num ponto onde todas as idiotices são válidas como grandes ideias. Vergonhoso caro amigo, chegar a esse ponto, ficar fletando com uma arma, teu livro aberto no chão me encorajando a fazer algo que, bem se sabe, ninguém quer fazer. Impulso apenas, tolo impulso de quem é covarde o suficiente para fugir de tudo, fechar a janela do mundo e se trancafiar dentro de si mesmo para sempre, não, na verdade, dentro de um caixão. Porra, acho que ninguém pensa nisso quando se mata. Tiro no peito, adeus problemas, Paris ainda é uma grande festa! Mas eu penso, sabe, eu penso nisso, em vermes, no cheiro da terra sobre o meu corpo, calor insuportável, meu corpo uma massa de sangue e gordura. Dois tiros seguidos, se eu conseguir, um pouco impossível, mas seria assim: Um bem no peito e com o restante de força que me restar, atiro nem na cabeça. Pronto, mortas emoção e razão. Mas e aí Hemingway, como se mata a alma? É com mágoa e ódio? Porque se for, a minha já morreu a muito tempo antes que eu morresse, você entende, já estávamos mortos antes do barulho que antecede a morte. Eu penso que, para pensar assim, devemos ser demasiadamente fracassados, compreende?Dois grandes fracassados. Nem tanto você. Pelo menos conhecem o teu fracasso, se isso serve de algum consolo.
Acho melhor guardar essa porcaria. Acho melhor eu parar de olhar prá essa merda de espelho e querer matar esse filho da puta que eu to vendo.
E pensando bem, acho melhor jogar fora o teu livro e dar um adeus a essa arma.

10 comentários:

Alexandre disse...

Acho que o hemingway ia gostar de ter lido isso

Flávia Guilherme disse...

Amei o trecho do hemingway...adorei aqui.

*Como me achou? Sempre tenho essa curiosidade.

Anônimo disse...

''porque as minhas letras são carnes feridas e infeccionadas de muitos anos'' ,excelente!

:)

Arthur disse...

"these words I write keep me from total madness" bukowski

Anônimo disse...

so pra dar um oi e dizer 'i see you'. rs
beijos e vc escreve bonitinho.

Faça a Diferença !!! disse...

Oi,

O post é para refetir...

H L disse...

só tenho a dizer que o texto é perfeito!
o.o
sem mais.

Marcelo Mayer disse...

a felicidade é uma arma quente

Fábio disse...

Ele fez jus ao que tinha.

Márcia(clarinha) disse...

todas as armas a mostra...

lindo dia
beijos