terça-feira, 5 de abril de 2011

A fisiologia do amor




Não tenho dinheiro, nem recursos, nem esperanças. Sou o mais feliz dos homens vivos. Há um ano, há seis meses, eu pensava ser um artista. Não penso mais nisso. Eu sou. Tudo quanto era literatura se desprendeu de mim. Não há mais livros a escrever, graças a Deus. E isto então? Isto não é um livro. Isto é injúria, calúnia, difamação de caráter. Isto não é um livro, no sentido comum da palavra. Não, isto é um prolongado insulto, uma cusparada na cara da Arte, um pontapé no traseiro de Deus, do Homem, do Destino, do Tempo, do Amor, da Beleza.... e do que mais quiserem. Vou cantar para você, um pouco desafinado talvez, mas vou cantar. Cantarei enquanto você coaxa, dançarei sobre seu cadáver sujo... Para cantar é preciso primeiro abrir a boca. É preciso ter um par de pulmões e um pouco de conhecimento de música. Não é necessário ter harmônica ou violão. O essencial é querer cantar. Isto é, portanto, uma canção. Eu estou cantando. [...] Estamos em vinte e tantos de outubro. Não acompanho mais as datas. Que diz você? Meu sonho de 14 de novembro do ano passado? Há intervalos, mas ficam entre sonhos e deles não resta consciência alguma. O mundo ao meu redor está se dissolvendo, deixando aqui e acolá manchas de tempo. O mundo é um câncer que está comendo a si próprio... Estou pensando que, quando o grande silêncio descer sobre tudo e todos, a música triunfará por fim. Quando tudo se retirar de novo para o útero do tempo, o caos será restabelecido, e o caos é a página sobre a qual a realidade está escrita. Você, Tânia, é o meu caos. É por isso que canto. Não sou nem eu, é o mundo morrendo, deixando cair a pele do tempo. Eu ainda estou vivo, dando pontapés em seu útero, uma realidade sobre a qual escrever.


(Trópico de Câncer - Henry Miller, 1934)





Há cinismo no que me refiro ao amor que possuo por este escritor, tanto que este velho simpático no banner do blog nada mais é do que o próprio Miller, desenhado pelo amigo desde sempre Junker.

Trópico de Câncer está longe de ser meramente um romance. É um marco, é a poesia desenfreada das ruas boêmias de Paris encontrando o duro concreto da prosa moderna, requintada, moça de anáguas e cinta liga que não sabe como controlar toda a sua sexualidade ao mostrar os joelhos delicados ao cruzar as pernas perante a sociedade. Expõe, sem ser vulgar, e se o é, é da maneira mais sutil e perdoável. E ali, entre as pernas, que se encontra o melhor de Miller. Não é o sexo, que move Paris, que move Miller. É o amor, por algo que ele precisa justificar para que seus pecados sejam absorvidos, o fazendo assim, encontrar a paz em algum paraíso artificial que explode a cada capítulo com a força de um orgasmo, destruidor como um câncer.