segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Dores em néon

Neon.



Andava entre os carros, desviando-se deles com extrema habilidade ébria enquanto os seus olhos se enchiam de neon e o seu corpo sumia em plena avenida como se fosse alguma lâmpada que lentamente ia perdendo a força, e somente os seus olhos brilhavam, duas faíscas incandescentes, dois pontos luminosos vermelhos. De neon. Era como um pássaro preso numa gaiola por muitos anos, mas agora ela estava completamente livre, poderia ir para qualquer lugar mas mesmo assim era um pássaro de asas quebradas se debatendo contra uma gaiola de vidro imaginária que, por algum motivo, se quebrara e agora não existia mais qualquer gaiola, ela estava solta e perdida num mundo estranho a ela, onde os carros não entendiam a sua dor e buzinavam loucamente, onde as pessoas que cruzavam com ela não viam que sangrava e se debatiam contra ela, se manchando com aquele sangue e aumentando as feridas, onde a noite caía cada vez mais com um peso maior sobre o corpo exausto e de asas quebradas que ela possuía e que o dia não cicatrizava, onde não se sabia separar mais o que era o sujo do limpo, os humanos de animais.Ela era parte agora desse mundo egoísta, imundo e miserável, e não sabia o que mais lhe doía, se era essa verdade ou suas asas quebradas, dilasceradas.



Gostava da dor de estar presa a sua gaiola, tão diferente dessa de estar livre. Não que fosse uma dor agradável mas era uma dor da qual já estava acostumada, uma dor amiga da qual a confortava,que não a deixava sozinha, ali sempre latejando por todo o seu corpo, sempre a lembrando da condição de pássaro numa gaiola, presa para sempre. Mas essa nova dor era demasiadamente cruel, ela não a sentia. Essa nova dor a abandonava, deixando feridas infeccionadas, pus amarelo escorrendo ora meio rosado pelo sangue ora meio preto pela sujeira das ruas por todo o seu corpo e por dentro dele.Era a sua maneira de dizer que ela estava abandonada a sua própria sorte, a seu próprio corpo e nem ela, a dor, queria estar com ela quando a noite chegasse, nem a dor, repetia para si mesma, teria piedade do seu novo destino traçado com lápis sobre um guardanapo. Ela via aquelas feridas, aquele sangue e as suas asas quebradas, mas não sentia de fato dor apesar de sentir essa dor dilascerando parte por parte do seu corpo de uma maneira tão insuportável que, já não sabia se era humana ou um animal, se era limpa ou suja. Sabia apenas que agora aquele era o seu mundo e que devia se acostumar a ele como todos os outros.



Então, descobriu algo ao encher seus olhos de néon pela primeira vez.



Sua dor tinha medo da luz, como todos os monstros noturnos que se escondiam da claridade do dia, luz do sol que não existia mais naquele mundo. Iluminado apenas pela artificialidade do néon.

Se debatia dentro dela, ela sentia a sua dor sentir dor, urrar de dor, quase podia ouvir sua dor pedir misericórdia.E todos os dias, que não eram dias eram sempre noite e madrugada, ela enchia seus olhos de néon como os enchia antes, quando era um pássaro perdido naquela noite suja, e não sabia dizer que dor era aquela que lhe queimava.

Agora sabia.

Se lembrou dos dias da gaiola, onde se esbaqueiava contra as pequenas grades de metal e vidro, mas que não sabia o que era se sentir sozinha.Havia aquela dor, a dor de suas asas quebradas como a de todos os outros que também estavam presos em gaiolas vizinhas e semelhantes, tão sozinhos como ela e a sua dor.Mas agora sua dor era ela, numa gaiola de carne e sangue, dependente dela. Dependente da escuridão e dos medos para se alimentar e se fortalecer. Pela primeira vez sentiu algo como um prazer( uma explosão de orgasmos múltiplos, se ela soubesse o que isso era isso), de ter o poder de controlar a sua dor, de humilha-la como antes ela fora humilhada, não ia lhe dar a escuridão e nem medos. Era dona da sua dor e somente ela decidiria quando destruir aquela gaiola e deixá-la livre.
Rompeu a escuridão daquele mundo e se inundou de néon.