"O que acontece é que não aguentamos o peso da consciência"
Gabriel Garcia Marquez
O celular vibrava mas só o soube quando percebeu o barulho de algo se movimentando dentro de sua bolsa, como se alguém por detrás dela seguisse seus passos e estivesse a vasculhando em busca de algo. Quatorze ligações perdidas de um número desconhecido num curto período de duas horas. Desligou o celular sem ao menos descobrir quem tanto a ligava, sem ao menos ter sido absorvida por um pouco de curiosidade ou preocupação. Estava muito tranquila, como há muito tempo não se sentia ao trilhar o caminho de volta ao seu apartamento. Também estava muito cansada e já sentia o seu cheiro sobressair o perfume que usara de manhã ao sair para o trabalho, os saltos incomodavam seus pés que não sabiam exatamente onde se apoiariam: se jogavam todo o peso para a ponta dos pés ou para todo o calcanhar. De vez em quando parava e tirava um dos saltos para que um dos pés descansasse um pouco e se lembrasse a postura correta para usá-los, o dedão do pé parecia inchado mas não tinha certeza, também não tinha certeza se era câimbra o que sentia em sua panturrilha. Estava próxima da rua do seu apartamento, onde usualmente havia uma grande movimentação naquele horário devido aos bares e restaurantes, mas que naquela noite estava vazia, com poucos carros estacionados e um ou outro que aparecia e desaparecia na curva de uma esquina. Tirou de sua bolsa seu já velho Ipod mesmo que só faltassem uns 5 minutos até chegar à sua casa e deixou que o shuffle escolhesse a canção que por acaso seria If you hold a stone, talvez do melhor álbum do Caetano Veloso na opinião do seu ex namorado, que nem sabia o nome do álbum e não conhecia o Caetano até conhece-la.
O porteiro a cumprimentou da guarita meio sonolento e desnorteado sem mesmo olhá-la direito. Não havia ninguém no hall de entrada como era de se esperar (não talvez para aquele horário), porém as revistas da sala de espera estavam espalhadas pelo chão e algumas inclusive estavam rasgadas. Talvez fosse uma das crianças do casal do quinto andar, do quarto ou do terceiro andar, mas preferiu não chutar o andar onde haviam as tais crianças (se é que haviam crianças naquele prédio ou mesmo casais). Estava tão cansada que sentou-se em uma das poltronas até que o elevador chegasse ao térreo do décimo andar. Segurava os saltos em uma das mãos e a outra revistava a bolsa no colo em busca do maço de cigarros e isqueiro, mas não os encontrava. Encontrou uma caixa de tranquilizantes quase dentro da bolsinha de maquiagem, mas não se lembrava de carregar consigo aquilo. Também não se lembrava que o elevador estava quebrado já fazia um mês e por sorte ela morava no segundo andar. Subiu os dois andares descalça, agora se lembrando que para se andar de salto o peso dos pés tem que se dividir entre as pontas dos dedos e o calcanhar, nunca jogando o peso do corpo todo para uma só das partes. Movia de vez em quando os dedos como se conduzisse um cigarro imaginário sendo que a vontade naquele momento era tão real que roía as unhas e deixava pelos lábios os pedacinhos do esmalte azul da semana passada. A cada degrau o seu corpo era arremessado para a frente, o peso do tempo a movendo lentamente. Tentava se lembrar de tanta coisa, mas só conseguia se lembrar agora do refrão de “Zombie” de uma banda irlandesa que não era o U2 e ela não lembrava, ela não conseguia se lembrar de tal maneira que no quadragésimo degrau sentou-se e tentou controlar um pouco o desespero da situação. Tentou aliás, se lembrar porque estava tão desesperada de tal forma que estava chorando e roendo as unhas. Os saltos foram arremessados até o trigésimo sétimo degrau e não havia uma previsão de resgate.
In your head, in your head
A canção se repetiu sete vezes e sete foram suas tentativas de se recordar o nome da banda que também já não se recordava que era irlandesa, como uma outra banda que ela também conhecia e que não conseguia se recordar qual seria. O Ipod estava sem bateria desde o momento em que ela entrou no prédio.
Desistiu.
Buscava agora a chave do seu apartamento dentro da bolsa (e tentava se recordar como é que fora parar na porta do seu apartamento sem seus saltos). Ao abrir a porta, se deparou com sua sala quase destruída. O sofá estava de lado e em pé, sua mesa de vidro quebrada assim como alguns vasos e objetos de decoração, suas lembranças de viagens e presentes de amigos espalhados pelos cantos, alguns próximos de uma televisão caída. Algumas fotos espalhadas pelo chão estavam rasgadas, mas seu rosto sempre permanecia intacto nas imagens, intacto e solitário em meio aos fragmentos das outras pessoas. Não se desesperou ao andar pelos cômodos e ver as paredes rabiscadas com palavras e desenhos inidentificáveis e suas roupas rasgadas, peças íntimas expostas nas luminárias e seus livros jogados dentro de panelas transbordando água. Não se desesperou ao ver marcas de sangue pelo chão, manchas que conduziam até o lavabo do banheiro que apresentava poucos sinais de destruição. Ela estava absorvida em todos os detalhes, absorvida demais para se desesperar por aquilo, ou por ela. O telefone tocava abafado, até que descobrir que estava dentro do lixo. Na segunda chamada atendeu a ligação, a música na cabeça, a banda irlandesa que a vocalista tinha nome de dor, os pés que doíam sem seus saltos. A pessoa do outro lado da linha gritava ao mesmo tendo que agradecia a Deus por tê-la atendido finalmente. Não compreendia tudo o que se dizia do outro lado, mas entendia que estavam preocupados com ela. Quem? Ela não se lembrava. A mulher apenas dizia que iria agora mesmo busca-la (seria sua mãe?) e que ela tomasse dois comprimidos do remédio (o tranquilizante?) que ela havia posto em sua bolsa ás escondidas para um caso semelhante a esse (que caso?). Não mais gritava, mas chorava enquanto pedia alguma coisa a Deus, implorava que ela tomasse os dois comprimidos e que ficasse no quarto. Agora ela dizia algo sobre surtos e suicídio, algo a respeito de sumir durante uma semana e a família (que família?) estar a sua procura (mas não havia ido ao trabalho?). Ela ficava muda, ouvia a mulher desabafar e aconselhar, apenas consentindo quando o silêncio e a urgência de suas palavras surgiam. A mulher novamente recomendava o remédio, o quarto e a calma. Ela não aguentava mais. A mulher pedia que não desligasse o telefone, para que permanecesse na linha, que contasse como chegou em casa. O fio do telefone cada vez mais se parecia com um colar de madrepérolas que ela sempre quis em sua infância, mas nunca teve a chance de usá-lo. A mulher chorava, dizia algo sobre amor e que tudo ficaria bem. O fio do telefone ficaria bem entre as suas correntes. Comentou apenas para que a mulher ligasse mais tarde, que ela iria tomar (então) os comprimidos e experimentar um colar de madrepérolas que ela havia comprado. A mulher consentiu, pediu cuidado e disse sobre amor. Antes que ela desligasse, perguntou à mulher misteriosa do outro lado da linha:
- Tem uma banda, in you head in your head, zombie, zombie, zombie. Ela é irlandesa, a vocalista tem um nome que lembra dor, ou que doí. Você sabe quem é?
5 comentários:
um refrão que veio bem a calhar.
beeeijos, ótimo conto!
Os teus textos são fortes, com detalhes. Enfim, emocionam e prendem a leitura!
Beijos
Deu até vontade de ouvir a música agora.
Como sempre, a maneira como você escreve prende nossa atenção.
=**
Matando a culpa de não aparecer aqui durante um bom tempo.
Obrigado.
Eu acho que esse texto tem potencial para ser mais explorado, virar um conto maior, e quem sabe, até um romance. Há muitos detalhes, uma história oculta e emoções fortes.
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