domingo, 15 de agosto de 2010

Post Vita

Para Hermes, sua história,
da maneira que a entendi.



Passou se muito tempo desde então, desde sua última lembrança real. Se lembrava vagamente dos resquícios de sua vida passada, uns 7 quem sabe 9 anos atrás, o tempo se torna muito impalpável quando se foge da gente, pensou enquanto brincava com uma moeda que corria por entre seus dedos, velho truque dos tempos da escola. Mas era um rosto muito familiar aquele, frente a sua porta. Talvez um antigo cliente, da sua vida passada, claro, porque agora reencarnara, segundo budistas encarnados nos seus livros de Allan Kardec, no mesmo corpo porém em outro espírito. Jogou fora todos os ternos notch que possuia, de lapelas tão tradicionais como o seu sobrenome, tão forte, como o homem que ele jamais conseguira ser. Não por medo, deixava bem claro no seu testamento post vita , mas por convicção mesmo. Passos largos e pisadas sorrateiras sobre o picadeiro formado por espectadores, jurados e o gran mestre o Excelentíssimo Juiz , agora eram apenas uma dor que incomodava suas pernas, reumatismo para os mais íntimos, esforço para os restantes.

Agora tanta coisa transitava em sua mente, com aquele rosto a lhe questionar o valor num breve sorriso impaciente de quem tem pressa, mas é forçado a ser simpático pelas ruguinhas de expressão ao redor dos lábios, velha tática de guerra onde um sorriso derruba muralhas milenares chinesas (e por isso o povo chinês lhe é tão infeliz), que todos os sinais vermelhos piscavam freneticamente em curto circuito, algum fio descapado estava solto e lhe dava choques, altas correntes de energia negativa, diga-se de passagem. Ouvia muito ao longe, um grito de desespero, um "culpado" sinuoso como cobra, em coral molto vivace. A quem atribuíram tal culpa? Segundo os relatos "reais", o culpado estava sentado numa mesa de mogno simples e arrojada, de costas para o grande público que aclamava o ínicio do gran espetáculo circence, com uma placa de cobre gravada réu. Segundo OS SEUS relatos, o culpado usava um terno arrojado, feito sob medida por um discipulo das modistas armani, era chamado de doutor por onde passava e usava um rubi sanguíneo no anelar. O "culpado" era um bom rapaz, no final das contas. Sobre ele recaía um estupro seguido de morte, 98 anos de prisão, digitais na cena do crime. A "vítima" era uma namoradinha da faculdade de biologia, uma paixão ainda persistente, daquelas que ardiam no peito como chibatadas com espinhos, incomodava para dormir. Entendia muito bem a dor daquele rapaz, só não entendia muito a da mocinha, delicada e aristocrática como ele, até então. Mocinha, que sem os cortes, a cor azulada e a dor nos lábios, lembrava muito a mulher que...

Ouvia o chamando para a realidade as unhas da mulher, impaciente a sua frente, batucando na sua mesa de eucalipto nobre, médias medidas. Dizia de medidas, a senhora. Busto, cintura, altura. Bem marcado na cintura, por favor. Seda não, algo mais simples, pode ser? Anos 30, aquela coisa toda, andei vendo uns filmes da época e tantos outros baseados nela. Depois vai pro armário, uma pena mesmo senhor, parece tanto que a elegância é fantasia hoje em dia, não é? Um preço bem razoável, fica pronto em quanto tempo? O senhor, não sei, devo ter te visto quando criança. Sempre trabalhou com isso?

Recolheu todas as provas possíveis que inocentariam seu cliente. Eram pouquíssimas comparadas com as encontradas pela acusação, afiada como suas tesouras prestes a picotar a boa imagem que fizera de seu cliente. Para ele, restava apenas o olhar daquele jovem apaixonado, para lhe inocentar. Queria acreditar que o olhar era a melhor defesa de um ser humano, mas sabia que, na verdade, era a maior prova de um crime. Foram meses e meses debruçado sobre as fotos, laudos e transcrições de um crime mal executado. Provas armadas tão grosseiramente contra o rapaz, dna plantando na cena do crime assim como digitais pelos móveis, ligações gravadas numa secretária eletrônica, declarações feitas de madrugada sob o efeito do alcool. Era mais do que natural ameaçar algo quando se é rejeitado tão enfaticamente, seja um provável assassinato ou um suícidio. Cada não que recebia da mocinha era um bala a queima roupas neste pobre homem ENTÃO MEUS CAROS SENHORES E SENHORAS, é este rapaz na verdade, a grande vítima deste cruel assassinato. ELA provavalmente morreu em poucos instantes, asfixiada, uma morte dolorida sim, mas rápida, uma morte justa e benevolente. Mas e ELE? Não é um crime cruel o bastante ser morto aos poucos? O coração sendo atingido dia após dia por tiros a queima roupa, o sangue preso na garganta impedindo que ele respirasse, e SENHORES, o cérebro para seu bom funcionamento e racícinio, digo, para o pleno exercício de suas capacidades mentais e sociais, necessita de oxigênio! ELE já não respirava senhores, estava morrendo aos poucos e NINGUÉM percebia, NINGUÉM intercedia ao seu favor. Ela estava com o rosto e as roupas sujas do sangue DESTE rapaz, sangue que respingava em cada palavra terna de amor, como se fosse a última a ser pronunciada prevendo a morte, em cada abraço que ao unir seus peitos, MACULAVA os trajes da assassina com o sangue deste inocente apaixonado.

Gosto da cor vermelha, apesar de o azul me cair muito bem. Sabe se vermelho era uma cor tradicional nos anos 30 senhor? Preciso encomendar os sapatos também, o senhor por ventura não realiza esse tipo de serviços? Algumas amigas vão apenas montar seus trajes com o que encontram por aí, mas eu quero mesmo encarnar em alguma mulher dessa época, quero algo real, o senhor compreende? É fantasia, mas parece tão real.

- Toda realidade é uma fantasia de si mesma, senhora. Daqui uns anos, irão me procurar para que eu crie fantasias dessa época.

Ainda em algum fragmento post vita, consegue resgatar algum resquício da realidade. Os jurados comovidos, a acusação pavorosa com o ato final daquele grande espetáculo. Era por alguns momentos o autor daquela peça, que pensando bem a respeito do final, o reescrevera para um grande sucesso entre o público.
Aclamado, ovacionado, palmas em silêncio que ressoavam no volume máximo em seus ouvidos, até que enlouquecera, de uma maneira sadia, como diziam alguns. Fora iluminado, diriam outros.
Do resto ele não se lembrava. Só do pai, que era alfaiate, e da mãe, modista. Os dois diziam sempre que a roupas que usamos dizem muito sobre o que somos, mas acima de qualquer coisa, de quem queremos ocultar. As roupas são a parte material da fantasia que inventamos para nós mesmos.

- Esse anel em seu dedo...médico senhor?
- Não, eu era um alfaiate das palavras, senhora. Agora sou um alfaiate das coisas materiais.
- Alfaiate das palavras senhor?
- Advogado, mas a muito tempo, numa vida passada. O anel permanece como lembrança de uma vida da qual deixei para trás. Acho que é um recipiente fúnebre, rubi feito de cinzas.
- Já vi anéis assim, mas eram diamantes. Não sabia que isso se aplicava a rubis também. Cansou de defender as pessoas, foi isso?
- Cansei de vesti-las de mentiras para que as pessoas acreditassem que aquelas palavras fossem verdade. Verdade mesmo são os tecidos, palpáveis que recaem sobre os corpos. A roupa é fantasia, é armadura, ás vezes é muralha. Mas é uma mentira bela, apaixonante. Agora costuro desenhos sobre mentiras desenhadas em moldes.
- Jamais entenderia o que o senhor fala.
- E se entendesse, já não seria fantasia. Seria apenas um tecido recortado sobre o seu corpo. Seria uma verdade toscamente fantasiada.
- Mas resumindo, meu vestido para essa festa dos anos 30, fica pronto quando mesmo?

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