Acordou de repente, com o coração acelerado. Exagerou na última carreira e na superdosagem de heroína na noite passada. Mas era aquele sonho, aquele MALDITO sonho que o perseguia, tinha certeza disso. Antes fosse um mero sonho e não um flash, um flash que havia acabado com sua frágil normalidade. Estava suando apesar da noite fria. Precisava de alguma coisa, qualquer bebida, talvez cocaína, algo forte, mais forte do que ele, mais forte do que ela, aquela menina, aquele flash. Queria chorar, se recolher em posição fetal no chão imundo da sua casa, se sentia humilhado. Não pelas contas a serem pagas e nem pelos seus exageros em drogas e álcool, tão criticados por seus colegas da profissão. Estava pouco se fodendo agora para isso. Só queria chorar por ele e por aquela menina. Ela que lhe rendeu a maior glória da sua vida e lhe jogou diretamente para o escárnio, a lama, a podridão, até onde um homem pode chegar numa escala de humilhações que passam de todos os limites. Seu Pulitzer, na estante, sempre o lembrando de seu brilhante profissionalismo, ética e objetividade. Queria enfiar tudo aquilo no cú de todos aqueles malditos críticos que lhe deram aquela porra.
Se olhou no espelho e só via ela, rastejando por comida, abrigo ou qualquer coisa. Claro que poderia ser qualquer coisa, ele se sentia o maior filha da puta do mundo por não ter lhe perguntado o que queria. O melhor enquadramento, era só isso que ele queria. Ele era um predador, mais um urubu na cena.Maldito, se odiava por isso.
Ele não queria isso, a grande verdade seja dita. Ela apareceu ali, quase implorando por aquela foto, que culpa ele teria? No fundo achou que aquela foto a ajudaria muito mais do que leva-la até aquele abrigo da ONU, tinha certeza disso. Ele só queria fotografar a guerra, era um jovem pacifista, o Sudão em uma guerra civil perdida, o mundo todo cego a ela. Queria sim horrorizar os jornais com aquelas cenas, queria que todos soubessem daquilo, que suas fotos fossem balas, gritos, o crepitar de corpos em meio a fogueira. Era isso.A menina apareceu porque queria que isso fosse mostrado da maneira mais cruel possível. Se sentiu orgulhoso por ter conseguido o que mais queria afinal. Era um membro do bang bang gang, sentia-se orgulhoso por ter mostrado ao mundo o inferno do apartheid, a libertação de Nelson Mandela e tantas outras atrocidades políticas em sua África. Colocou a sua vida em segundo plano, pelo amor ao fotojornalismo, por amor a verdade. O mundo precisava deles. Oosterbroeck estava morto; uma bala perdida cravada em seu peito e sua câmera ensanguentada, Marinovich; sete cirurgias, mais um câmera ensanguentada. Sabia que era injusto, que todos os que o aplaudiram por sua coragem e por sua competência, agora, o repudiavam, riem as suas costas por sua situação humilhante. Sádico e desumano, era isso que todos disseram após a foto ser publicado no New York Times.
Talvez o fosse, porque não? Maldito egoísta.
Encontrou nas drogas e no álcool algo em que acreditar, algo que o fortalecesse, que o fizesse esquecer daquela menina. Encontrou nela muito mais do que um prêmio e uma denuncia. Encontrou nela aquilo que em breve seria.
Não, jamais haveria alegria naquele sorriso.
ASSASSINO, escrito em sua testa. Era apenas isso que ele lia todas as vezes que se olhava em algum espelho, em alguma lente.
Ele queria ter a salvo, mas não foi forte o suficiente para isso.
Queria ter se salvo.
"Eu estou depressivo…sem telefone…dinheiro para o aluguel…dinheiro para o sustento das crianças…dinheiro para as dividas…dinheiro! Eu estou sendo perseguido pela viva memória de matanças, cadáveres, cólera e dor…pelas crianças famintas ou feridas…pelos homens loucos com o dedo no gatilho, mesmo policiais, executivos assassinos…”
Trecho da carta de despedida de Kevin Carter
Fotojornalista sul-africano suicidou-se após anos registrando a miséria humana
Johannesburgo, 27 de julho de 1994.
Suicída-se o fotografo Kevin Carter.
O corpo fo encontrado próximo a um lago em sua cidade natal,Johannesburgo,África do Sul, dentro do seu carro. A morte foi provocada por inalação de monóxido de carbono.
Kevin Carter foi o grande ganhador do Prêmio Pulitzer deste ano, pela foto em que mostrava o horror da guerra do Sudão através do sofrimento de uma menina sendo devorada em vida por um abutre.Kevin era membro da renomada bang bang gang. Grandes jornalistas que arriscavam suas vidas para mostrar ao mundo que de fato ocorria em todo o continente Africano.
(Conto Baseado na música "Kevin Carter-Manic Street Preachers" e na reportagem do blog "Revista Wave")
http://www.revistawave.com/blog/index.php/2008/02/20/kevin-carter-1960-1994/PORQUE NÃO PODEMOS DEIXAR QUE ISSO SEJA ESQUECIDO.
PS: Não estou aqui de maneira alguma defendendo a causa humanitária. Não que eu seja fria o bastante para isso, mas enfim. O texto é uma forma de protesto contra a injustiça cometida contra Kevin Carter e o seu precoce esquecimento.
Um comentário:
Postar um comentário