sexta-feira, 4 de julho de 2008

Véspera do dia em que de repente enlouquecerei

Para Gabo.
As portas batem as toalhas voam
o dia se esbaqueia como um pássaro dentro de casa
(ou uma lembrança
dentro da casa)
Véspera do dia em que de repente enlouquecerei
(Manhã-Ferreira Gullar)
Acho que estou enlouquecendo.
Ou estou voltando a ser lúcido.
Foi assim:
Comecei a ter lapsos de memória, poucos inicialmente, mas que com o tempo foram se tornando cada vez mais constantes e preocupantes.Letras de músicas, filmes, livros, endereços.Depois foram os nomes dos meus amigos, dos colegas de trabalho, namorada, cachorro, vizinhos e familiares.Aí me esqueci dos meus amigos, dos colegas de trabalho, namorada, cachorro, vizinhos e familiares.Fui esquecendo de mim, de quem eu era.
Preocupados com tal situação, meus pais resolveram me levar a vários especialistas a fim de descobrirem o que me aflingia.Todos os médicos foram unânimes:Eu não tinha absolutamente nada, mesmo que alguns deles ainda achavam estranho o fato de um jovem de 25 anos ter esses lapsos sem apresentar qualquer dano cerebral.
Mesmo assim, continuei me esquecendo das coisas.Esquecendo de fatos marcantes da minha infância e da minha adolescência ou fatos recentes, como o que eu acabei de fazer há 10 minutos atrás.Minha mãe, no auge de sua angústia ao me ver assim, teve uma idéia: Colou por todas as paredes de casa fotos de tudo o que fosse relacionado a mim, com bilhetinhos explicativos.Me dera também uma agenda, para que eu anotasse tudo o que havia feito no meu dia.
Como se houvesse operado um milagre, parei de esquecer.Lentamente as lembranças foram voltando aos seus devidos lugares, graças a todas aquelas fotos e bilhetes que cobriam por completo as paredes.Com o passar dos anos as agendas se multiplicaram juntamente com as fotos e os bilhetes.A única coisa que acabei esquecendo foi da cor das paredes.
Começaram a me taxar de louco pelo meu método.Quase todos os meus amigos foram se afastando pouco a pouco de mim, larguei meu emprego e parei de sair.Me sentia ridículo andando para baixo e para cima com uma agenda, anotando cada passo.E em alguns casos, fotografando.Estava totalmente dependente daquilo.Tinha medo, horror de perder qualquer foto, qualquer anotação, por achar que perdendo algo, perderia minha memória,me perderia.Ao meu lado então, permaneceram apenas meu pai e minha mãe.
Enfim, um dia morreram.
Primeiro meu pai, coração.Anotei todos os detalhes da sua agonia no hospital e da sua morte, e fotografei e colei pelas paredes algumas fotos do cadáver e do caixão.Depois de algum tempo foi minha mãe, derrame.Os mesmos detalhes anotados e devidamente fotografados.
Então me senti solitário.Inicialmente ainda encontrava alguma companhia naquelas lembranças espalhadas por todos os cantos de casa, mas depois, elas começaram a me incomodar e a fazerem
que eu me sentisse dia após dia sozinho, como se elas participassem de uma confraria e me deixassem de lado.Passava por elas e elas diziam coisas a meu respeito, coisas que eu não queria ouvir, coisas que doíam, mesmo que belas.Comecei a ouvir então os risos de todas aquelas pessoas que me abandonaram, ou por estarem mortas ou por que fingiam estar mortas para mim.Risos, ora de felicidade ora de irônia.Risos que me humilhavam, que me rasgavam, me machucavam.E eu sei que alguns ali riam dessa minha situação constrangedora.
Eu já não dormia devido ao barulho que elas faziam ao se debaterem contra as paredes da minha casa.
Os dias foram passando e cada vez mais uma idéia amadurecia dentro de mim.
Eu só queria que elas ficassem mudas, que não me falassem mais nada, que não rissem mais de mim.
Decidi que iria as calar antes que eu enlouquecesse.
Rasguei todas as fotos e todos os bilhetes e destruí todas as agendas.Coloquei fogo em todos aqueles pedaços do meu passado, pedaços que um dia foram meus.Juro que até podia ouvir os gritos desesperados deles ao fogo, pedindo mais uma chance, gritando por misericórdia.Mas eu não tive.
Agora esse silêncio, essa paz, essa solidão tão leve, tão calma...
E fui me esquecendo dos meus amigos, dos livros, dos filmes, das músicas, dos meus antigos colegas, das minhas namoradas, dos meus cachorros, dos lugares, dos sabores, dos meus vizinhos, da minha familia.E fui esquecendo de mim, de quem eu era e de tudo o que eu já havia vivido.E me senti feliz, completamente feliz por não saber mais quem eu era.
Esqueci de tudo.
Menos de uma coisa.
A parede.
Ela era azul.

14 comentários:

Leandro Mayfair disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

ótimo,
ótimo o texto!!
muito bem elaborado e escrito!
ótimo mesmo, parabéns!!
adorei.


Bjooos

Anna Clara disse...

eu já pensei sinceramente que era louca. aí eu fui ver os bolinhos no forno e esqueci.

Fláh disse...

As vzs esquecemos de algo pra lembrar d nós mesmos.
Mas as vezes precisamos nos esquecer de nós pra lembrar da vida.

R. disse...

Muito bom, moça! Muito bom mesmo. Daria um bom filme com o diretor certo, mas não faria sucesso em hollywood. Lugar certo em Cannes, no entanto. Tem um cara, o nome dele é Darren Aronofsky. Seria o diretor perfeito, creio. Na falta do diretor a cromoterapia: adoro azul.

Bjs

Anônimo disse...

Eu poderia dizer que é autobiográfico?
A parede da sua sala é azul.
Depois de "para não dizer adeus" e "body&soul",é o melhor conto que você já escreveu.
Até porque todos nós temos esses momentos de querer esquecer quem somos para sermos felizes.

Gabriel disse...

Concordo que daria um filme, e um ótimo filme se bem dirigido.
E parece,pelo o que eu andei lendo dos seus contos, que você descreve com sensibilidade essas fraquezas humanas.
Dos vícios até os mais mesquinhos medos.
Acredito que a melhor contista blogada que já tive a oportunidade de ler.

Adriana Gehlen disse...

nossa.
concordo com o 'r.'

.ju mazzuchini. disse...

taí uma pessoa bonita.
se fez necessário ler-te desde então.

Nadezhda disse...

Que estranho. Tive um deja vú lendo.

Mas está muito bom!

Vivo esquecendo das coisas. Mas há detalhes que nunca se perdem ;)

Clarice_Reis disse...

Nossa adorei seu texto,muito bonita a história,mas muito muito triste também.
Me deu vontade de ser igual a esse cara,mas ao mesmo tempo não,pois não sei se seria uma boa opção esquecer de tudo.Não que ele tivesse feito de propósito,mas sei lá,talvez seja bom esquecer de tudo.Ou coisa do tipo.
Enfim,vou voltar aqui.
Beijos,e ótimo blog:)


Ah eu sou Clarice Caldas(ta e aí?haha),se quiser qualquer dia desses passar em meu blog tosco pode passar,sou irmã da Nadja(sabe a do "La vie en rose"?),e claro que o meu ou as coisas que escrevo não se comparam as dela mas eu tento.Háhá:)



beijos:)

Sonhos e Devaneios disse...

Nossa muito interessante esta historia, acho que vou ler-te desde o inicio, preciso conhecer-te melhor.
beijos joao

Lisa disse...

As vezes o melhor jeito de ser livre é esquecendo de quem você é

=)

Anônimo disse...

"a salvação pertence apenas àqueles que aceitarem a loucura escorrendo em suas veias"