sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Pandora

Ao aniversariante.

As mulheres e as crianças são as primeiras a desistirem de afundar navios.

(Ana Cristina César)

Tempestade.
Sozinha em sua nova casa, arrumava o restante da mudança com uma taça de vinho em mãos. Olhava para as caixas com um leve sorriso desapontado, de quem queria deixa-las de lado e correr pelo quintal, como fazia quando era criança, quando não havia grandes mudanças e caixas fechadas de lembranças.

Andava pela casa iluminada apenas por alguns abajoures, dançando uma música qualquer, no silêncio quebrado pelos trovões e pelos fortes ventos. Seus dedos corriam pelas janelas, desenhando na umidade dos vidros o nome dele. Se assustou com alguns raios e cobriu com lençoís os espelhos próximos. Voltou para a janela, observando a tempestade que só aumentava, e seus dedos novamente desenhavam aquele nome. Gritou para que eles parassem, deviam abrir caixas e não feridas.
Sentada no chão, foi abrindo as caixas com um certo ressentimento, como se fosse Pandora e sua caixa. Ao abrir, talvez revelasse maldições que carregava consigo, que a destruíriam. Deja-vu

Ali.
Roupas, livros, cartas e fotos.
Mordeu o lábio, respirou fundo e tomou de um só gole mais uma taça de vinho. Era hora de revirar no chão, como um lixo, todo o seu passado.
Suas roupas que ainda continham o cheiro dele, os livros que recomendavam e liam um para o outro e aquelas cartas de amor e ódio que eram e não eram remetidas. Fotos desde quando era uma criança até aquele momento, onde ostentava o peso de sua maturidade. E em todas aquelas fotos, era como se ele estivesse. Aquela presença só dele que estava em tudo, e dentro dela.
Mais uma taça de vinho, trovões, todas as caixas rasgadas como ela, espalhadas pelo chão, pedaços dela que completavam os espaços vazios dele.
O coração apertado, batidas fortes, suor frio. Seus dedos que tremiam, que faziam ela ir até o telefone, dedos com vida própria que discaram para aquele telefone que ela havia esquecido, eles não. Caiu de joelhos, pernas bambas a cada toque. Do telefone, dos lábios, da pele dele sobre a dela.

-Alô
-Sou eu, por favor, não desligue.Está chovendo
-É, eu sei, aqui também.Tudo bem?
-Está chovendo dentro de mim, entende?
-Chove dentro de você?
-Eu não sei. Só você sabe fazer isso parar, pode vir aqui? Eu te passo meu novo endereço
-Não posso...Meu filho está com pneumonia e com medo dessa chuva. Mas eu sei que você é mais forte que isso, saberá fazer isso parar.

Desligou em sua cara

Ela então vai se recolhendo pelo chão, recolhe a ele também. As caixas vão ganhando novamente um sentido, um peso. Talvez sua consciência.
Abre a porta, a tempestade continua implacável.
Arrasta as caixas até lá, revira-as sobre a lama, sobre todas as poças. Vai as vendo murchar, virar nada alem de caixas molhadas, papéis destruidos, roupas sujas. Ri. Começa a correr pelo quintal de braços abertos, girando , como fazia quando era uma criança. Sem nenhuma caixa aberta de lembranças a sua frente .Não era mais Pandora.

Volta correndo para dentro de sua casa.Não queria pegar uma pneumonia.

domingo, 26 de outubro de 2008

Oração a qualquer Deus que exista.

"Não estou só. Estou no meio de outros solitários. E cada um e todos nós falam sua linguagem singular! Equivale a virmos, juntos, de deus distantes, cada um envolvido na aura de seu próprio mundo incompreensível."
(Henry Miller)


Outubro, dores vermelhas, tristeza violeta seca que não floresce nesta primavera que toca nossos corpos delicadamente, brasas em cinzas espalhadas pelo preto e branco de nossa memória.

E se algum Deus existe, não existe. Mas

Peço-lhe que gentilmente não deixe para trás esse resto de mim que há em você, páginas viradas e amassadas, sujas de vãs tentativas poéticas, porque nós sabemos calados e conformados, que somos vãs tentativas de tudo, feitos de um vazio impreenchível e permanente de sonhos.
Escute.

Dilascerante.

Isso que desce pelos ouvidos, amarga os lábios, queima a alma, mais uma dose.
A cada esquina, cada bêbado, cada lixo, cada som, cadência, saberá que fomos feitos para nos completarmos nessa maldita solidão que nos afoga.

Lira flutuante salgada, corpo e alma, Coltrane
Amém.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Música que perdeu as notas musicais sob uma fina garoa.

Digo-lhe
encontrei com você ontem a noite. Malboro azul. Jazz pela casa, Lee Hooker. Um pouco do seu sorriso ainda pelo meu rosto apagado.
No brilho da tv, algo do seu. Algo do meu que se foi. Algo de nós dois.
A madrugada que se prolonga, 4 da manhã de uma quarta feira que eu sinto que já é quinta feira, eu perdi o controle do tempo, sabia? Queria dizer que realmente eu já não consigo dormir com facilidade, então eu compreendo o porquê da sua cara de mal humor quando eu o acordava, porque é essa a minha cara, o meu atual humor.

Esse sorriso agora sim pode ser falso de verdade.

De mãos, de sorrisos, de beijos, sobraram alguns rascunhos. Sua letra, a minha. Nosso sonho num papel reduzido a somente folhas amassadas e rasgadas.

Então me lembro do nosso último abraço sob uma fina garoa no final de um domingo, e o que era um samba a dois, cartola e chico, insisto num vinícius, perdeu ali algumas notas.
Chuva, tempestade torrencial dentro de mim com raios apocalipticos&trovões ensurdecedores, que não me deixam ouvir aquelas palavras que saíram da sua boca, aquele adeus que não fora um adeus, fora um até logo, mas um até logo quando?

Apagou, eu acendo, sem problemas

O seu gosto sempre nos meus lábios, e sim, ainda haverá de ser um cancêr.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Laelia.




- Qual flor me indicaria?
- Uma orquídea.
- Não entendo nada de orquídeas, acho as apenas delicadas.
- Delicadas e sensuais.
- Sensuais?
- Sim, sensuais. Seu perfume e suas cores vibrantes sempre nos excitam.
- Mulheres!
- Hermafroditas. Orquídeas possuem os dois sexos.
- Não acredito! Uma flor tão feminina!
- Porque não acreditar? Nós homens também temos uma parcela feminina em nossos genes. Esqueceu que temos um X? Claro que não afloramos com facilidade esse nosso X, mas ele está ali para provar que nós homens não somos totalmente homens, temos a delicadeza das mulheres adormecida. Isso se aplicaria as orquídeas.Elas possuem um androceu, que seria o seu orgão masculino, o seu grande Y exótico, que está ali por meramente necessidade reprodutiva. Mas isso não tiram delas a sua femininidade, tão exclusiva delas e só delas.
- Ah? Nunca fui muito boa nessas coisas.
- No quê?
- Sexo.
- As orquídeas são ótimas amantes. Exalam seu perfume e explodem em suas mais diversas cores, o que atraem os insetos ao seu interior. Oferecem-lhes seu doce ginoceu, ali tão protegido como se fosse algo intacto, puríssimo, embebido em resquícios de néctar e pólen, que fazem seus amantes delirarem. Êxtase.
- Mas isso ocorreria, caso eu a levasse para casa?
- Claro, você seria sua amante. Não de todo o modo, como lhe diria? Ah, você se sentiria em êxtase a cada vez que tocasse delicadamente suas pétalas, exalasse o cheiro de seu ginoceu e levasse aos seus lábios um pouco daquele néctar. Flertar com sua orquídea ajudaria a floresce-la. Manter-se sempre jovem, bem cuidada. Amor recípocro. Próprio.
- A orquídea?
- Ambas.

sábado, 18 de outubro de 2008

Agora.

Agora, somente somos fotografias,
sorrisos congelados em abraços paralizados nesses momentos retratados pelo toque das nossas mãos.
1 ano em um segundo de espera, pela sua voz.
ou 1 década em um dia de espera, pelo seu rosto que modifica o meu.
Agora, apenas uns cigarros apagados, não fumados
pelas cinzas de que nos tornamos
de todas as cinzas do que não fomos.
Eu sempre estive errada, nunca verdadeira
estes meus olhos que nunca mostravam a pouca verdade que havia em mim.
Sei que encontrará nos restos do que fui
os cacos dos sonhos que partilhamos.
Agora

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Tango anacrônico

Deslizo sobre teu corpo enquanto Gardel chora por sua Buenos Aires convalescente, e os teus olhos encontram os meus lábios que encontram em suas pernas algum resto de tango.Jornais velhos com o rosto de Perón em suas capas anunciam o nosso amanhã que é tão breve quanto essa madrugada que se esvai em nossos apelos por mais um verso borginiano.Sussurro quase aos gritos de tão suaves e surdos que você mal pode compreender o quanto de você há em minha voz, nesse silêncio que não pode calar as vozes das mães da praça de maio, que clamam por seus filhos que estão muito além das nossas janelas, fechadas para todos os jogos propostos por Cortázar.