quinta-feira, 7 de abril de 2011

Paulistanagens #1



Dublinenses



[Presente]


Ele já me esperava sentado dentro do Ibotirama, mesa ao fundo perto da escada, bebiricando uma cachaça, olhando prá janela ao lado, observando o movimento da Fernando de Albuquerque (e também dos grupos animados de hypes, fumando ao lado de fora do bar e aparentando uma felicidade incomum, um misto de conformismo com satisfação). Havia me atrasado, 10 minutos precisos no celular mas que no relógio de parede indicavam uma longa espera por ele, que tentava esconder num sorriso forçado a impaciência. Me aproximava esgueirando dos garçons, que equilibravam fritas em uma das mãos enquanto na outra seguravam firmemente as garrafas de cerveja. Pelo trajeto (não mais que 10 passos, desviar de uma garçon, dar um olá para um outro, desviar do cara que se levanta de uma cadeira da qual passei rente) pensei se deveria o cumprimentar com um beijo nos lábios (um selinho, boca semi aberta esperando que ele enfiasse a lingua, que a movimentasse com ternura enquanto os seus lábios engoliam delicadamente os meus) ou um abraço meio requentado (meu braço esquerdo pendendo de lado enquanto o braço direito envolve rapidamente suas costas, um beijo no rosto e um sorriso seguido de "como vai você?"). No fim, quando estávamos frente a frente, apenas nos olhamos sem nenhum sorriso, nenhum cavalheirismo da parte dele que deveria ter se levantado, puxado a minha cadeira e só voltasse a se sentar assim que eu me sentasse. Puxei qualquer assunto depois do "nossa, faz tempo que a gente não se vê né?", comentei como a Augusta havia perdido a sua graça, e que o Ibotirama era uns dos poucos lugares dos quais eu ainda me sentia a vontade para me sentar e beber uma cerveja, sozinha, sem ser pressionada pela cidade a estar com alguém ou estar aberta a conhecer qualquer pessoa. Ele também havia comentado algo do gênero, mas da maneira estúpida e rabugenta dele, que nem parecia ter 26 anos. Algo como estar cansado das convenções sociais que somos obrigados a desempenhar, e qual era o problema de gostar de ser e estar sozinho em São Paulo? Suspirei quando disse que São Paulo destruía até a solidão que nos presenteia.
Brinquei repetindo o que um amigo havia me dito, um boato que despediram um dos cozinheiros do bar para que pudessem ter as famosas luzes verdes. Ele não riu, mas proferiu um discurso politizado sobre o capitalismo e todo o blá blá blá marxista do qual ele era contra em partes, mas por algum motivo, gostava de defender como método para irritar as pessoas e extrair delas o que elas realmente achavam. Eu não achava nada, nem os meus óculos dentro da bolsa. Estava quase dormindo naquela mesa com a terceira cerveja. Mas de tédio.


[Passado]


Nos emails, um dele. Sem assunto.

Pensei que fosse algum spam, mas por garantia abri. Dizia que ainda me amava, e que sentia muito pelo fim que havíamos tido. Ele trancado num hospício, eu procurando em cada homem alguma coisa dele para me abandonar. Tanto tempo que não pensava nele, nem com as menções encontradas nas músicas dos Beatles as quais embalaram por muitas noites as minhas recordações de tudo o que vivemos. Ou de nada, um encontro na casa de um amigo, um esbarrão no dia dos namorados, uma tarde entre as árvores no interior. Um amor inventado e alimentado com desespero de quem necessita encontrar alguém. Mas ninguém se encontra em São Paulo, todos se trombam e se machucam.

Respondi que também sentia saudades e que sentia igualmente pelo nosso fim (fim do quê mesmo? De um cigarro que eu roubei dele? De um baseado que compartilhamos? De um boquete feito ás pressas?) e que por mim tudo bem, vamos nos encontrar e reviver os velhos tempos (mas reviver o quê meu Deus?)

Ele só queria transar, mesmo sem ter mencionado isso em uma única linha do email e em nenhuma palavra pelo telefone. Eu já sabia pelo tom de sua voz ou com o cuidado que escolhera as palavras no que ele me escrevera, disfarçando todo o desejo que ele ainda possuia (e que eu desconfiava que estava guardado em alguma pasta do seu computador, com todas as minhas fotos nua, que enviara certa vez, querendo que ele batesse uma punheta pela web cam para mim). Ele não sabia o que era amor, mesmo que fosse o tema principal de suas poesias, que eram fracas, tijolos que se desmanchavam numa parede mal rebocada.
Eu o amava, mas apenas porque eu o havia inventado.



[Presente]


Disse que iria para Dublin, quando já estávamos deitados numa cama desconfortável de um dos motéis da Augusta, logo após ter gozado. Um amigo iria o hospedar e tocariam juntos em alguns pubs, era algo realmente lucrativo e ele realmente precisava de novos ares, desaparecer dos problemas e das lembranças (de pessoas como eu). O incentivei, dizendo que era tudo o que ele mais precisava no momento: começar algo do zero (porque não, pensei, começar um romance do zero, agora nessa cama? Mas me calei, ele não precisava de pressões além da que eu fazia com a minha cabeça em seu peito). Perguntei o que o seu analista havia dito a respeito da viagem, ao que ele coçou a barba e me olhou com olhos úmidos e cansados. "Vamos falar de outra coisa, pode ser?"

"Quando for, você me manda um souvenir da viagem?"
"Tudo bem, o que você quer? Não vale cd do U2"
"Ah não, eu só queria um Joyce ou um Shaw prá ler no original, impresso na Irlanda mesmo"
"Shaw? Joyce?"
"É, são escritores irlandeses. Bem conhecidos por sinal. Conhecidos prá caralho, não me leve a mal"
"Pensei que você lesse Crepúsculo, essas coisas"


Me levantei daquele corpo desconhecido sobre a cama, coberto com um lençol poído (de vergonha) e o olhei como se tivesse acabado de adentrar aquele quarto na ponta dos pés, e me deparasse com aquele estranho, que em alguns momentos recitava um amor que ele não possuía por alguém que agora, se revelou, não conhecia. Pedi que fôssemos embora (ou ele que havia feito o pedido?) o quanto antes, eu ainda tinha que pegar o último ônibus para casa e precisava dormir, meu corpo estava moído (quase acrescentei, da cerveja, não se vanglorie).

Nos despedimos dentro de um vagão do metrô, ao desembarcar na estação Sé, com um abraço carinhoso e um beijo no rosto, muito tímido, muito carregado de qualquer coisa estranha que precisava ser repelida dos corpos.

Ele partiu para Dublin, mas o que eu não sabia, é que São Paulo possui sua própria geografia a parte do mapa mundi.

Dublin era uma das esquinas da Rua Augusta.



8 comentários:

Unknown disse...

Acabei de ler e me lembrei dos contos de Paul Bowles. A descrição da cena, dos diálogos impertinentes, melhor, incompreendidos, nos deixa em um clima frio e distante. Triste e bom de ler, reconhecer, reviver.

Márcio Ahimsa disse...

Ele sentou, ela cansada de histórias sobre a Grécia antiga, coisa e tal. Ao fundo, a parede com um palco decorado com versos beatniks, alguma coisa de Ferlinghetti, ou Kerouac. Uma banda cover tocava The Doors: "people are strange". Ele, na pele do novo burguês pós moderno, com sua postura neo liberal, fumando um charuto de Havana. Ela, passando o dedo em círculos pela cerveja super gelada que acabara de servir. O versos de Bukowski fazendo cócegas em suas virilhas, desejando que aquele marmanjo imerso em sua introspectiva relação com o mundo se abstivesse e inventasse um falastrão de fim de happy hour e partisse para cima dela com cortejos a lá Dom Juan de Marco. Mas suas expectativas findaram. Apenas terminara com os ombros servindo de muletas para o amigo bêbado, que nada entendia dos desejos reclusos ou evidentes de uma mulher. Ainda sou um marginal pensando na poesia que ainda quero inventar. Ela, sem o afago da libido, ele, preso na antologia poética de Rimbaud, eu, inventando histórias similares, para velar um mundo que morreu quando deixou de gozar a vida pelos becos e esquinas de qualquer rua dessa cidade pelada de gente. lembrando que sou cosmopolita, minha rua é de paralelepípedo, minha calçada de asfalto, minha estrada é feita de trilhos, meu mar é uma núvem que desenho com a asa que meus pés inventaram de tanta pedra e aço alçados pelos tornozelos, sem apelos, nem zêlos, apenas tentaram chegar em abundância e meus braços enlaçar o corpo sentindo as nádegas me fazerem suspeitar que não sou nenhum santo.

Antônio LaCarne disse...

Katrina, muito bom esse texto! Na verdade o blog é uma maravilha. Adorei a fluência das ações. Obrigado por ter visitado meu blog, espero que sejamos amigos blogueiros. Abraço!

Priscila Novaes disse...

Gostei muuto das descrições que usa.
Que texto!

Anônimo disse...

Só respondendo seu comentário:

Acredita que nunca li o Nelson na vida?

Stella Rodrigues disse...

Esses meus escritores, cada vez com textos maiores. Queria ter tempo de ler todos. Saudades daqui, mas o trabalho e a faculdade nao deixam. Continua exemplificado suas opiniões maravilhosamente bem.

Beijos

Anônimo disse...

Fracassado sou eu (alem de mal-pago) vc eu ja acho genial! Me desculpe, mas virei seu fã. Deve ser um porre ter fã, mas fazer o que ne...

Julio P Vicente disse...

o que deve fazer com isso, é publicar num livro de contos. "Mas ninguém se encontra em São Paulo, todos se trombam e se machucam." sensacional. eu até diria que alguns caem e ficam com olhar de quem espera uma mão pra levantar.